domingo, 4 de setembro de 2011
Carta Para Helena
-O Garoto Inspirado-
As pessoas não lêem mais,perderam esse hábito.Minto,elas lêem sim.Na internet,nas placas,nos jornais,mas só nas manchetes expostas nas laterais da banca do jornaleiro.Na segunda-feira após um domingo de clássico no futebol,parecem abelhas em torno da colméia.
O que quero dizer é sobre livros.As pessoas não lêem livros como antigamente.Não culpo a internet,nem a tv.Não culpo nenhum fator predominante,o fato é que não se pode mais viver de livros hoje em dia.Na verdade,acho que nunca se pode.Não sei bem.Logicamente,ninguém é apenas escritor.Acho que sou uma exceção.Eu tinha 3 livros publicados antes dos 18 anos de idade.Todos venderam entre meus amigos e parentes,no máximo,sendo bondoso,uns 7 exemplares cada um.Consegui publicá-los por insistência de amigos e financiados por bicos que fazia como office boy de uma firma.
Ingressei na faculdade de jornalismo,com 20 anos,queria especializar-me em jornalismo cultural ou social,ou político.Acho que não saberia escolher,e independente do que eu escolhesse iria me arrepender e pensar:"Por que não escolhi o outro seguimento?"Desisti da faculdade,não para viver em estado contemplatório de tempo, em boemia,vadiando.Não.Não foi para ficar a toa.Larguei a faculdade porque meu tempo seria suprimido por uma profissão melhor.Sem carteira assinada,sem insalubridade,sem fundo de garantia por tempo de serviço,nenhum direito trabalhista.Era instável,só que com os contatos certos,não faltaria trabalho e sendo bem sucedido,não precisaria de muitos anos para me aposentar com conforto.Tinha prós e contras essa nova carreira que descobri.Mas era melhor do que viver de livros.Continuaria escrevendo.Veria publicações com minhas dissertações,com minhas narrativas,sonetos,poemas,tudo escrito por mim.Como faria isso sem depender da venda livros?Ou de uma apuração,interpretação e divulgação de informação,que é o caso do jornalismo...?Simples.Tornei-me um escritor fantasma.
Uma noite estava eu atarefado no computador esquematizando trabalhos da faculdade,quando um amigo talentosíssimo literato,me perguntou se eu gostaria de escrever uma tese para seu pai.O pai dele era sociólogo,iria estar no tele-jornal matinal,dentro de alguns dias.Esse amigo era o Jorge e seu pai Leandro Bossonaro.Seu pai sabia que existiam ghost writers.Mas todos lhe pareciam muito caros,assim,sabendo ele que seu filho cursava jornalismo e esse é um celeiro de escritores ocultos,pediu que seu filho,cujo gosto literário era prosaico demais,indicasse um amigo para tal função.Sem titubear ele me escolheu.
-Escriba das Trevas-
Ghost writer,escritor fantasma.É uma profissão que deve existir a quase tanto tempo quanto a prostituição.E analisando friamente têm coisas em comum,vejamos.Uma puta vende o que é de propriedade sua,para satisfação alheia e o escritor fantasma,escreve e vende o que escreveu para outra pessoa assinar e levar todo o crédito,ambos só ficam com o dinheiro,a satisfação,o prazer,nem sempre vem junto.Com a proposta feita por meu amigo Jorge,tornei-me ghost writer.Foi meu primeiro trabalho nessa área e eu não conhecia nada sobre ela.Quando recebi a oferta de Jorge,indaguei que nada sabia sobre sociologia,sabia muito pouco na verdade,mas quando ele disse que seu pai pagava bem e eu me lembrei dos carros importados na garagem da enorme casa deles,dos video games sofisticados que ele ostentava,das mulheres que circulavam com o recém divorciado senhor Leandro Bossonaro,completei dizendo:'Não sei muito sobre sociologia,mas me dê alguns dias para aprofundar-me e compor uma tese."e ele me respondeu:"Sei que tu é capaz,cara."Passei os 3 dias seguintes mergulhado em pesquisas sociológicas,e durante a pesquisa conversei com o senhor Leandro,que me depositou muita confiança,até me super estimou um pouco.Eu odeio ser super estimado,gosto mesmo é de ser subestimado,aí sim,eu me saio melhor.Acertamos pagamento e meus olhos brilharam,ganharia em um texto,o que levava um mês para ganhar quando era office boy,isso claro,se ele achasse que meus serviços lhe valessem.Então na manhã determinada enviei por e-mail o texto,que não era uma tese,era uma espécie de discurso didático a cerca da sociedade comtemporânea do ponto de vista dos jovens,Leandro Bossonaro,decorou o texto e o cuspiu na tv,colocando palavras suas.Senti-me extremamente empolgado e orgulhoso como nunca!O texto puramente era meu,a narração,as análises,as metáforas usadas para exemplificar situações,eram todas minhas.Quando recebi o dinheiro em mãos eu soube,nasci para ser um escritor-fantasma.Porém,o senhor Leandro freava-me,dizia que o anonimato as vezes pode causar um vazio indescritível,o sentimento de inveja pode ser dilacerante,para o ghost writer.
Fiz alguns outros trabalhos para o senhor Leandro,porque ser ghost writer é como ser ladrão de jóias,você faz uma vez,dá certo,você se vê cheio de grana e conclui que é impossível não querer tentar de novo.Senhor Leandro era capaz sim de compor uma dissertação que prestasse,mas ele não tinha tempo e quando passou a ter tempo,meus trabalhos para ele se tornaram dispensáveis.Ele me indicou para outras pessoas,deixei então de escrever palestras didáticas e comecei a compor discursos políticos,para candidatos bizarros,desses que aparecem cheio de papagaiada na propaganda eleitoral da tv.Em quase um ano,o meu nome,Rafael Silva,já era falado pelos becos obscuros da escrita anônima.A posição de ghost writer famoso é contraditória,agir nas sombras e ser conhecido apenas dentro dela é de fato muito inquietante,isso não posso negar.No fundo acho que todas as pessoas sabem que existem ghost writers,ou alguém pensa que uma ex-prostituta que nunca leu livro algum,exceto ter foliado o kama sutra,é capaz de compor uma narrativa?Ou um ex-participante de reality show?Não estou sendo preconceituoso,estou sendo realista.Todavia,comecei a escrever para políticos,e fui alertado,fui muito alertado pelo senhor Leandro,lidar com políticos no Brasil é o mesmo,que se envolver com agiotagem,jogo do bicho e essas falcatruas...Quando entrei sabia que poderia ser perigoso,mas a cifras atraíram-me.
Prosperei.Com 21 anos,trabalhava em casa no meu computador,as vezes ia na padaria,pedia uma cerveja gelada e abria meu lap top e ali compunha um excelente texto de campanha,cheio de jargões estapafúrdios.Meus pais me recriminavam,diziam que larguei a faculdade para ficar em casa digitando,para eles eu dizia que era datilógrafo,redigia textos e os enviava para meus chefes,eles acreditavam,pois viam a grana que recebia ou metade dela.Um moleque de 21 anos ainda é um adolescente,pelo menos eu era,nessa época.Quando eu tinha meus 13 para 14 anos,eu já fazia quase tudo que continuava fazendo com 21,exceto sexo.Então,com dinheiro,eu era um moleque extremamente imaturo,sem despesas e um mundo cheio de sexo,drogas, rock n´ roll e sensações para experimentar.Experimentar...eu era imaturo,mas já tinha medos que me perseguem até hoje.Temia que um dia eu levantasse de manhã,fosse abrir meu lap top e quando abria o programa de criação de textos,nada saía,não tinha idéias,a inspiração teria se esgotado.Meu medo era de que um dia minha criatividade se esvaísse.Assim,achava eu,que precisava sempre de novas experiências,de experimentar...Então,comecei a beber o dobro do que bebia antes,a me arriscar o triplo,em todos os tipos de festas e me envolver com todos os tipos de pessoa.Sempre me encantei com a versatilidade das pessoas.As pessoas,as situaçãoes,os momentos,as experiências.Isso tudo é fonte de inspiração inesgotável,a vida é inspiração para arte,não o contrário.Eu sentia necessidade de viver,tinha sede de experimentar e fome de criar,com o resultado do que eu via.Explicando bem como é a mente de um autor,cada situação,cada troca de palavras,cada conversa alheia ouvida,entra para o inventário de diálogos que um escritor tem no cérebro.A trama surge,com as experiências,com as situações,e o talento,a genialidade que provém do escritor nato,cria o jeito de contar a história,ou seja a construção da narrativa,as palavras empregadas,as ênfases,isso vem do talento do autor e é o que diferencia quem tem talento de quem é esforçado apenas.Sempre pequei em ser pouco auto- confiante,sempre precisei ouvir muitas vezes que era bom para me convencer,e ainda assim,não cheguei a me considerar genial até hoje na maturidade,considero-me talentoso,mesmo achando chato falar assim de mim mesmo.
Nessa minha rotina,eu era um rapaz,que teimava em não largar de vez a adolescência e por outro lado,colocava palavras nas bocas de grandes homens cheios de vida que estufavam-se ao declamar minhas palavras,sem nem ao menos me conhecer pessoalmente,apenas depositavam na minha conta bancária.Isso,por que nesse tempo,meus clientes eram apenas os conhecidos do Leandro Bossonaro.
E nos fins de semana me juntava a Jorge e uma patota de garotos e garotas e íamos para todos os lugares da cidade,as madrugadas corriam,nós dávamos as mãos a elas e corríamos junto.
-A Patota-
O Jorge eu conheci quando fiz um cursinho de informática,uns anos antes de entrarmos juntos pra faculdade.Ele lidava bem com equipamentos eletronicos e com poesia,tinha uma banda de fundo de garagem,passamos a compor juntos,ele me pedia para cantar mas eu não era um bom intérprete.Os instrumentos musicais da banda de Jorge eram financiados por seu pai rico,é mais fácil se dedicar inteiramente a arte quando se tem berço de ouro e você não precisa trabalhar duro para conseguir grana.Faziam apresentações nas praças de nosso bairro,em pequenos eventos de bandas independentes,essas coisas.Jorge fazia questão de dar créditos das letras de nossas músicas a mim,meu amigo era o guitarrista e fazia segunda voz,a vocalista era uma garota chamada Helena,que cursava direito na mesma faculdade e fazia teatro também.Estar perto desse grupo de jovens voltados a arte me fazia sentir como se estivesse revivendo a fase de ouro da bossa nova.Nos reuníamos nas sextas e sábados á noite,para filosofar e beber,não só beber,alguns fumavam maconha e o Jorge cheirava cocaína também,isso fazia nossa conversa tomar rumos embriagantes de prosa e poesia.Douglas,o baterista usava cocaína,Thiago,o baixista fumava maconha e de vez em quando tomava ecstase,porque curtia também umas festas eletrônicas,Susana amiga de Helena nos acompanhava e não largava seu baseado,mas não bebia,porque dizia que fazia mal,nunca consegui enteder nada do que essa garota falava.Helena e eu apenas bebíamos,por isso conversávamos mais. Eu sentia insegurança em Helena,pois ela temia que os demais a achassem careta,porém eu a tranquilizava e dizia que eram nossos amigos e esse papo de que você começa a se drogar porque seus amigos drogados te chamam de careta é balela.De fato,com drogas ou não,essa união de poetas,músicos e atores,era sempre surreal,independente de psicotrópicos.
Fazia já um ano que eu estava neste ramo da escrita secreta.Eu tinha ao menos dois serviços por mês,que me rendiam uma grana regular.Para manter o sigilo da profissão evito revelar.Imagina?Tornar tão acessível essa profissão poderia levá-la a extinção,detalhes como pagamento são segredos entre os escritores fantasma. Nem meus pais sabiam ao certo quanto eu recebia,mas gostavam quando eu os ajudava nas despesas de casa.Então de súbito comecei a sentir a instabilidade do meu seguimento,quando as campanhas políticas se esgotaram com o fim do período de eleições,os meus cachês gordos vindos dos políticos param de me abastecer.E os trabalhos mensais regulares findaram juntamente,foi um ano de comícios e volta e meia algumas palestras para ambientalistas.Todas esses clientes,eram indicados por amigos próximos uns dos outros,uma cadeia de amizades que começara em Leandro Bossonaro.
Com demasiado tempo,meus fregueses foram se escasseando.Senti que precisava de um agente,ou um escritório,vi que o deslumbramento do começo me cegou a ponto de eu não me preocupar com o futuro,como a continuidade do meu trabalho.Deveria ter retido um dinheiro e pensando em estabilizar-me.Por outro lado,também poderia voltar a faculdade e concluir uma graduação no mínimo,afinal quem haveria de respeitar um escritor sem nível superior?Agora tinha mais tempo livre e nenhum dinheiro.Eu estava nessa situação,quando aquela menina veio me procurar...
-O Pedido de Helena-
Na internet,enchendo meu cérebro de informações inúteis,fui surpreendido pelo e-mail de Helena.A garota que não fumava,não cheirava,mas tinha um bom papo e era maravilhosa.Digo maravilhosa no sentido de espetacular,ela era muito gostosa.Uma jovem de 18 anos,ruiva,de olhos verdes e um corpo torneado por requintes tupiniquins,linda.Era difícil estar conversando com ela enquanto estava bêbado,tinha medo de não controlar-me,não é exagero.Quando vi que tinha um e-mail dela na minha caixa de mensagens recebidas,não pude deixar de me intrigar,o que Helena quer comigo?Nos víamos nos fins de semana aqui e ali mas não éramos íntimos,nunca havíamos nos correspondido na internet.Apressei-me e abri sua mensagem.Ao ler,apenas soube que era algo profissional,pois estava escrito:
"Rafael,soube q vc escreve coisas pelos outros,não é?Preciso de seus serviços.Podemos nos ver a amanhã às 16:00 horas na lanchonete?" Respondi:
"Claro!"
Estar à sós com uma mulher dessas na rua chamava a atenção.Mesmo que apenas conversássemos,fui ao encontro constrangido.Sempre imaginei que Jorge a havia convidado para sua banda,só pela sua beleza,mas ela era inegavelmente talentosa.Chegando ao local,vi que já se encontrava na lanchonete.
Ela pediu dois chops e uma porção de batatas,temi,pois não tinha dinheiro para dividir a conta,o que dirá me oferecer para pagar.Agente não tinha muito assunto sóbrios,só trocávamos palavras quando bêbados,cercados por nossos demais amigos de conversa fácil.Para pular os rodeios iniciei:
"-Então Helena,como posso te ajudar?"
"-Jorge me falou sobre seu trabalho,sei que é meio secreto,né?"
"-Totalmente,as vezes sinto-me como Clark Kent,entende,tendo uma vida dupla..." Tentei ser engraçado,mas apenas arranquei um "heh" de sua boca.
"-Se dependesse da indiscrição vinda de Jorge você estaria ferrado,hein.rs." e ela riu do próprio comentário.
"-Pois é.Gostaria que eu lhe ajudasse a compor algum texto pra faculdade?Eu tenho certo interesse em legislação também."
"-Não,não é para faculdade é pessoal mesmo.Vejo suas poesias,quando você e Jorge escrevem músicas juntos.Sei que você escreve bem."
"-Poesia.Por favor não me pessa para fazer uma,porque estou em um momento pouco poético,mesmo diante de teus olhos,que possuem um verde de tonalidade indescritível." Não pude evitar de jogar-lhe um gracejo,ela era muito linda!
"-Já está sendo poético,rs.Na verdade é algo bem sério,que quero..." Ela não perdia a tranquilidade um minuto,mesmo depois de me falar a seguinte frase:
"Rafael,eu quero que você escreva a minha carta de suicídio."
-Inconcebível-
Era absolutamente inconcebível.Uma garota linda de 18 anos de idade,aparentemente tranquila,tendo tudo o que deseja,
sendo ela fruto de desejo para todos os garotos e homens que a vissem,quisesse se matar.Eu perguntei e ela repetiu:
"-Quero que você escreva a minha carta de suícidio,não é o que você faz?Escreve pelos outros?Vai me ajudar ou não?"
"-Helena,você tem noção do que está dizendo?"
"-Absolutamente."
"-Se eu disser que não farei isso?"
"-Então,terei que me matar e ninguém nunca me entenderá.Não vai fazer diferença alguma,morrerei de qualquer forma..."
Ela falava com uma propriedade assustadora.Eu via verdade nos olhos dela,ela estava convícta do que dizia e pretendia fazer.Mas eu não compreendia seus motivos,achei que seria intrometer-me demais perguntar suas razões.Por isso,propus:
"-Faço,posso fazer.Com uma condição."
"-Qual?" ela me indagou.
"-Até o término da carta você vai me deixar tentar fazê-la desistir do suicídio."
"-Isso não é justo."
"-Não é justo você querer tirar a tua existência de perto da minha..." falei isso baixinho,murmurando.
"-O quê?" ela se inclinou e me olhou bem dentro dos olhos.
"-Disse que essa é minha condição.Só assim farei sua carta.Ou isso ou você morre feito uma lunática,porque quem se mata sem deixar explicação é claramente tachado de louco,sabe disso,né?"
"-Acha que eu estou brincando?Pensa que não sou capaz?"
"-Não foi nada disso que eu disse,então,temos um acordo?Não vou te cobrar nada depois que você morrer."
"-Você não ta me levando a sério.Olha isso aqui."
Dizendo isso,ela sacou da bolsa um frasco pequeno com umas bolinhas escuras dentro.Li no rótulo que era chumbinho,veneno para ratos.
"-Tomo um punhado disso com chopp,aqui agora,quer ver...?" ela começou a despejar em sua mão as bolinhas.
Mandei ela guardar aquilo e estendi minha mão,ela achou que era para me dar um pouco daquilo,mas recolhi os dedos e perguntei:
"-Temos um trato,uma carta por uma mera tentativa de desistência?"
"-Tudo bem,temos.Você não vai me convencer mesmo..."
Apertamos as mãos e saímos de lá.Passei o resto do dia ainda sem enteder,como pode,como seria possível isso?
-A Valsa da Chama Sobre o Candelabro-
Implicitamente,eu queria entrar na vida dessa garota,aprofundar-me.Para assim saber,sem perguntá-la,o motivo que a levasse a decisão de cometer suicídio.Porque sabendo o motivo,eu poderia tentar convencê-la de não fazer isso.
Na manhã do dia seguinte ao nosso encontro,deitei a mão sobre meu caderno e tomei um lápis,queria ser rudimentar,por isso dispensei o computador.Eu olhava para brancura das páginas,rasgadas simetricamente pelas pautas azuladas que corriam de um lado a outra da folha.E nada saía.Não conseguia pensar em argumentos para defender a morte de uma garota tão bela.Vejamos,ela é linda,estuda,canta,saí e parece se divertir,namora...espera aí.Ela tem relacionamentos curtos,sempre a vejo trocar de namorado.Sempre achei que ela fizesse isso por diversão.Talvez essa seja a questão.Helena possui tudo o que quer,mas não tem o que ela deve julgar de suma importância,um amor verdadeiro.Mas será que isso poderia levar uma garota tão maravilhosa a perdição total?Não sei,a conheço pouco,não posso me precipitar.Larguei o caderno e corri para o computador.Inexplicavelmente,a brancura total,sem pautas da tela me dava inspiração,ver Helena on line no programa de troca de mensagens instantâneas também.Tive vontade de perguntar de uma vez,o motivo de sua decisão,alegaria que precisava dessa informação para fazer a carta.Só que ao invés disso,compus um poema e batizei-o de "A Valsa da Chama Sobre o Candelabro."
O curto poema era assim:
"Fora acendida com a intenção de iluminar,
sua luz é quente,forte e pode até queimar.
Baila cintilante,trazendo a claridade para as trevas,
toda escuridão se dissipa diante tua pose de bela.
Observando sua dança,não é possível desvendar qual será
seu próximo passo;
porém meus olhos curiosos não hão de sair de teu encalço.
Tão brilhante que é capaz de nos encantar,ao tempo que se muito
nos aprochegarmos é feroz para nos machucar...
Porque complexa luz,queres tanto se apagar...?"
Era bondade chamar isso de poema,eram versos que meus dedos regurgitaram na tela.De qualquer forma,enviei para Helena.Ela ficou uns segundos sem responder,eu imaginei que ela lia e relia.E também interpretava o que eu escrevera,deixei ela digerir o texto.Depois de um tempo curto,respondeu-me:
"-Rafael,não posso explicar o motivo da minha decisão,é algo que não se pode dizer com palavras.Para entender é preciso sentir..."
"-Então me deixa sentir..." eu respondi de imediato.Ela demorou mais alguns segundos,provavelmente pensando na resposta,ou simplesmente porque falava também com outras pessoas naquele momento e finalmente,apareceu na telinha:
"-Vai me enrolar só com esse poema ou já começou a escrever minha carta?"Ela era quem estava me enrolando...Então tive uma idéia,assim de repente:
"-Tá bom,não vou te pedir que me fale suas razões,mas pra me ajudar a te conhecer profundamente,que tal se agente passasse um dia juntos..."Isso parecia uma cantada...se ela levasse para esse lado eu diria que era mesmo,mas se não,eu diria que era sem maldade.O nome disso é dissimulação masculina,só para constar.
"-Que tal amanhã?"Agora ela respondeu rápido.
"-Ótimo,eu escolho os lugares onde iremos e no fim da tarde,deixo você escolher,pode ser?"
"-Por mim tudo bem,desde que eu não tenha que lhe pagar a carta antes de morrer.Rsrsrs..."
"-Tudo bem,não vou te cobrar,pode deixar." E a conversa findou.
Ela falava sobre morrer muito tranquilamente,isso era estranho,as vezes não dava para levá-la a sério.O dia correu e eu não consegui ainda escrever nada e ver o ponteiro piscando na tela esperando que eu começasse a escrever era tedioso.Rezei para que chegasse logo outro dia.Eu tinha o péssimo hábito de ignorar uns dias da minha vida,não fazendo nada e deitando-me para dormir com a sensação de que apenas amanheceu e voltou a anoitecer em um piscar de olhos.
-Ensaio Visual Sobre a Vida e a Morte-
No meu ponto de vista as pessoas devem sempre buscar superar o que lhes parece ser uma limitação.A minha limitação era compor um ensaio.Quando li a primeira vez um ensaio de um famoso ensaísta português,fiquei maravilhado e pus na cabeça que eu devia me tornar ensaísta,só que nunca conseguia escrever um.Eu meditava sobre a vida e a morte por causa de Helena
e vi na situação atual uma chance de compor um ensaio.Fiquei no portão de casa,do lado de fora,aguardando que ela viesse,pois hoje era o dia em que gastaríamos nosso tempo juntos.Porém fui surpreendido por outra pessoa,o Jorge.Caloroso como de costume,ele veio com um sorriso canalha,li na testa dele que vinha se vangloriar de alguma coisa,mas eu não tinha certeza do que:
"-E aí,meu amigo trovador!"
"-E aí,meu amigo músico...O quê me conta,essa hora da manhã já no meu portão?"
"-Estranho é você estar de pé aí essa hora da manhã,um sujeito que trabalha em casa,sem horários fixos."
"-Não é bem assim,tenho prazos para entregar meus textos,logo,não tenho tempo para ficar a toa.Mas então..."Afoito,ele me interrompe.
"-Rafael,adivinha com quem acabei de passar a noite?"
"-Helena?"Não seria estranho,ele já vem tentando desde que a conheceu e ela já perdeu o gosto pela vida mesmo.
"-Quase.A amiga dela,aquela tal de Susana.Meu irmão,aquela garota é uma ninfomaníaca!E olha que estávamos sóbrios!"
"-E você precisava vir em primeira mão me dar a notícia?"
"-É que to vindo da casa dela,é caminho entre minha casa e a sua."
"-Não tá de carro?"Jorge dirigia carros do ano,coisa que eu só faria com anos de árdua e desgastante escrita.
"-Não.Sei que é vergonhoso mas meu pai me proibiu,só porque levei outra multa..."
Nossa conversa extremamente banal e vazia foi pausada pela chegada de Helena que vinha andando com um blusa curta branca,mostrando o piercing no umbigo e uma esvoaçante mini saia cor de rosa.Jorge me olhou e falou:
"-Safado!É por isso que ta aqui no portão,você ta transando com a Helena,moleque?"
"-Não,Jorge,eu não tô transando com a Helena."Jorge chegava a ser engraçado as vezes,pela sua falta de pudor.
A estonteante Helena chegou e mal falou com Jorge,me puxou pela mão e deixamos o Jorge ali com cara de otário.Aqueles olhos verdes,aqueles cabelos ruivos,Helena parecia saída de uma capa de revista.Antes eu não reparara muito,ou porque estava bêbado ou porque ela estava longe em cima de um palco,cantando letras minhas e de covers de bandas famosas.
Mas enfim,era sábado e agente ia fazer o que combinamos,ela falou:"Pra onde vai me lavar,rapaz?" e respondi:"Você vai saber quando chegarmos."Saímos andando.
Minha idéia era mostrar um ensaio sobre a vida e morte para ela.Um ensaio,não escrito,mas vivido,um ensaio em três dimensões,em tempo real.Foi aí que comecei a entender que eu precisava viver um ensaio e não tirar ele do nada.Não era como narrativas ou dissertações,para fazer um ensaio literário era necessário estar no âmago do tema proposto e nesse caso,era a vida e a morte.
No caminho do lugar que eu levava Helena saquei meu caderninho e comecei a escrever umas coisas,ela me pediu pra ver mas eu me neguei e disse:"Vamos fazer assim,eu te mostro a vida e defendo o porque de preservá-la e você me mostra a morte e porque ela te seduz,como em um tribunal,onde eu defendo a vida e você a morte."Ela topou e logo chegamos no lugar que escolhi para iniciar o dia.Uma praça pública do nosso bairro,nos fins de semana sempre estava cheio de crianças e suas mães e babás,correndo atrás dos peraltas.Sentei-me com Helena num dos bancos de concreto,ainda meio humedecidos pelo orvalho da manhã.Ficamos pelo menos uns 5 minutos sem falar nada,só observando as crianças brincarem e eu vi no rosto de minha cliente suicida,um esboço de sorriso.Perguntei:
"-Consegue explicar o que você ta vendo?" e ela balançou a cabeça negativamente,sem tirar os olhos das crianças.
"-Isso é vida Helena." eu respondi e continuei. "O que você ta vendo é a vida,é o que você pretende renunciar.Simples,né?Vendo ela assim,observando felicidade de criança que sorri maravilhada com o simples ir e voltar do balanço.Contemple a vida,Helena.Você vai me dizer que a vida não é só isso e eu de antemão replico,a vida de fato não é só isso,tem momentos muito mais magníficos,dos quais te mostrarei os mais simples."
Ela despencou em prato.Definhou a chorar,chegando a soluçar e atrair um pouco de atenção para nós,rapidamente,recostei sua cabeça em meu ombro,escondendo-lhe a face.As lágrimas dela encharcaram minha camisa,deixei que caíssem com liberdade,eu imaginava o quão pesada eram aquelas gotas.Quando ela parou de chorar e tirou sua cabeça de meu ombro,vi que de fato minha camisa estava consideravelmente molhada e nesse momento,peguei meu caderninho dentro da mochila que eu trazia e coloquei-me a escrever."Eu posso ver,Rafael?"ela me pedia,"Não."eu respondia.Depois de mais alguns minutos,nos levantamos e prosseguimos nossa pequena odisséia
O próximo lugar que eu a levaria,era tão desconhecido para ela quanto o motivo do acesso de pranto que ela teve anteriormente era para mim.Eu não conhecia os motivos dessa garota e essa era a grande questão,então lhe fiz uma nova proposta:"Se você me falar o motivo pelo qual você quer se matar eu mostro o que estou escrevendo."ela riu,riu muito e falou:
"Nãooo."Desse jeito,bem extenso.Em seguida ela correu,saiu correndo,me deixando sem entender nada,ela corria e gargalhava.
Sem saber o que mais poderia fazer,disparei atrás.Tinha gente na rua,era uma manhã de sábado,pessoas iam e vinham,eu ia esbarrando e me desculpando,enquanto Helena esbarrava e continuava ela parecia não enxergar as pessoas,que passavam como vento por ela.Eu a seguia e sentia seu perfume exalar,pois estava me aproximando.A surpreendente garota foi cansando e seus passos diminuíram,nos emparelhamos em uma espécie de trote."Corre Rafael,foge,escapa."ela disse."Correr de que?Fugir de que?Escapar de que?" ela parou,olhou-me e virou um pouco a cabeça de lado,como fazem os papagaios,respondeu-me:"Das pontes...são as pontes,consegue entender?"Não entendi nada.Calei-me.Fiquei pensando que ela estava em níveis intelectuais tão líricos que eu era ignorante a ponto de não entender suas metáforas,ou ela estava drogada.
-Revelações.-
Conhecia muito mal essa garota,por isso não esperava esse acesso estranho que ela teve.Drogada não estava.O ocorrido pareceu-me um reflexo rápido de infantilidade,que lhe fora despertado pela vista de crianças felizes brincando despreocupadas.Na cabeça das crianças não se passam hipóteses suicidas.Talvez refletir sobre isso tenha perturbado um pouco Helena.Todavia,relevei aquilo e continuamos.
Chegamos ao próximo local,a igreja.Perguntei se ela acreditava em Deus,ela disse que sim,que fora criada nos preceitos católicos,entretanto largou as vocações e as missas dominicais.Em seguida,me contou uma história que logo me pareceu ser a luz que eu tanto procurava,no túnel sombrio que era a mente dessa linda moça:
"-Rafael,eu não quero entrar aí,não entro desde que eu tinha 12 anos."
"-Porquê?Você crê em Deus e praticou na infância os ritos católicos?Qual é o problema?Já sei,você sabe qual é o destino dos suicidas,segundo as Escrituras..."
"-Não é por isso."
"-Então...?"
"-Eu vou te contar uma coisa,Rafael."
"-Conte-me,Helena!"
"-Quando eu tinha 12 anos eu estava na igreja..," nessa hora eu pensei:"Puta merda,ela foi molestada!" mas me enganei,e minha credibilidade no ser humano e nos sacerdotes se manteve. "eu ouvi uma coisa estranha."
"-Que coisa?"
"-Vozes.Tem vozes gritando na minha cabeça,Rafael.A primeira vez que as ouvi foi na igreja."
Essa garota não era normal,afinal,acredito eu,que pessoas normais não pensam em suicídio.Sou católico e dentro da nossa doutrina sei que é possível esse tipo de coisa,mas eu queria ser cético a idéia de que essa garota era de fato louca me martelou a cabeça.Então,Helena continuou:
"-Você deve estar achando que sou doida,né?Mas eu não sou!Eu sei o que eu ouvi.Ouvi as vozes uma vez quando era menor,foi só uma vez,mas agora,elas voltaram e começaram a rondar meu quarto!Eles vêem de todo o tipo,Rafael,eu nunca disse isso para ninguém,porque temi que me julgassem louca!Eu estou sendo perseguida,estão em toda parte!"
"-Vozes...mas o que elas falam?" e ela subiu numa pedra grande que estava repousada sobre o chão da propriedade da capela:
"-As vozes,falam muitas coisas das quais eu não entendo,ontem elas disseram:"A vida é uma sombra que se move;um pobre ator que dá cabriolas e se agita durante uma hora,em cena,e de que se não torna ouvir falar!"
Palavras filosoficamente poéticas.Não seria incomum ela ter uma dialética desse nível,Helena é atriz e eu não tendo a crer no sobrenatural logo de cara,palavras assim poderiam naturalmente terem saído de sua cabeça.Me parecia na verdade que Helena estava se fazendo de tola,de louca,para me confundir ou apenas brincar comigo.Toda essa história de suicídio poderia ser uma piada de mal gosto,para cima de um jovem escritor com tendências introspectivas.Uma moça linda,inteligente e entediada,poderia estar me sacaneando,ainda mais sendo ela atriz,melhor ainda para a sua piada corporal,simulando possíveis ataques.
"-Nossa,você está sendo atormentada por vozes inspiradíssimas,hein."
"-Acha que eu estou de sacanagem,né?Perda de tempo...vou pra minha casa.Não precisa escrever merda de carta nenhuma!Eu me abro para você e falo toda a verdade,e você debocha de mim...eu vou embora agora!"
"-Espera Helena,não vai!Calma!" Louca porra nenhuma,ela compreendeu meu sarcasmo.A bela de olhos verdes ia já dando-me as costas e num impulso puxei-a pela mão,virou-se para mim com uma feição completamente diferente de todas que eu já a havia visto fazer,arrepiei-me e ela disse:
"-Na minha luxúria não há fundo:as vossas mulheres,as vossas filhas,as vossas matronas,as vossas virgens,não poderão encher a cisterna da minha sensualidade,os meus desejos são capazes de transpor os obstáculos que queiram opor-se à sua vontade.”
A ouvir essa frase larguei-a temeroso,não parecia ela...Era outra pessoa falando!Poderia ser atuação,eu queria me convencer de que era atuação,só que a naturalidade em que ela interpretou essa cena me assustou demais.Helena caiu sentada e começou a chorar novamente,dizendo:"Rafa,me abraça!" e eu o fiz.
-Roleta Russa.-
Saí com Helena para longe dali.Os caminhos que eu planejara levá-la,já havia perdido a vontade de o fazer.Recomecei a escrever no meu caderninho,pretendia fazer um ensaio,mas desisti.
"-Tá escrevendo minha carta aí,né?"ela indagou.
"-Na verdade,a sua carta nem comecei,eu estava fazendo um ensaio,tentando...Já que você me fez uma revelação,vou mostrar ele pra você:
" Ensaio-Sobre da vida e a morte.
A vida.
Os conflitos humanos chegam a ser cômicos.Todas as pessoas na Terra possuem problemas,não importa o quanto tenham,
querem algo mas,isso é inegavelmente coisa de ser humano.Analisa-se:alguém que possua bens materiais sente-se carente de
de sentimentos afetivos,de variáveis formas e variáveis quantidades;a medida que aquele que possui sentimentos que lhe agradam,pessoas que lhe trazem bons sentimentos,julga-se quase satisfeito,quase,porque almeja alguns bens materiais que lhe não está a alcance.Logo,observa-se que a vida toda,o ser humano,qualquer um,independente do que ele tenha para julgar-se detentor da felicidade,almeja algo mais.A todo momento o homem quer algo que lhe não tem a mão,como uma linha de chegada que se afasta a medida que novas medalhas são conquistadas,o que é contraditório,porém é fato.
A morte. "
Ela leu essas palavras e concluiu:"-Por um acaso,você está dizendo que eu sou ingrata?Que tenho tudo,mas ainda assim estou insatisfeita e decidida a morrer?"
"-A princípio sim," respondi ,"mas agora não mais." nisso arranquei a folha e a joguei no chão.Ela a pegou e guardou em seu bolso.
"-Poeta...não jogue suas palavras ao chão."
"-Essas palavras são equivocadas." Desisti novamente de fazer um ensaio,talvez ainda faça,ao longo da minha vida,ou não,talvez daqui a três anos eu ache essa história de escrever besteira.Talvez até,eu seja o maluco dessa história toda.
"-Helena você quebrou meus planos,agora não sei mais para onde devo levá-la.Eu tinha convicção de que te convenceria a desistir de se matar,sabendo que os suicidas vão para o inferno."
"-Hahaha,eu já sabia disso e nem temo.Rafael,que tal andarmos sem destino por aí?"
"-Tudo bem,não tenho nenhum plano melhor em mente mesmo."
O meio-dia se aproximava,o dia passava a passos largos.A revelação que Helena me fez me intrigava.Vozes!Ela tem o que chamam de sexto-sentido?Na minha doutrina isso pode ser atribuído a dons do Espírito Santo e por outro lado,atribuir fraudes a dons do Espírito Divino era um pecado imperdoável segundo as Escrituras.O que realmente se passa com essa menina?Me sentia na obrigação de ajudá-la.
"-Escuta Helena,você não pensou em procurar ajuda antes de decidir se matar?É mesmo por causa dessas coisas que você vê e ouve que quer se matar?"
"-Eu preciso de respostas,Rafael.Ninguém aqui pode me ajudar.Ninguém."
Balancei a cabeça,fingindo concordar com o que ela falava,mas não concordava obviamente.Meditei sobre as frases que ela me falou anteriormente,não me eram estranhas.Andamos e eu pensava sem conseguir,me recordar de onde aquelas falas me eram familiares,que eu já as tinha ouvido estava convicto.A fome de almoço já nos apertava o estômago,a manhã passou rápida por nós.Com pouco dinheiro disponível,sugeri então uma lanchonete,ela não haveria de querer comer algo dispendioso nos derradeiros dias de sua vida,aceitou de bom grado,fomos então a uma barraquinha de cachorros-quente que ficava na praça ali perto de onde estávamos.
Comer cachorro-quente é comer cachorro-quente,tentei olhar para aquela ocasião e tirar algumas palavras interessantes para escrever,mas não existiam.Era um ato simples,natural e saboroso.Quando estamos com muita fome a comida torna-se especialmente saborosa e apreciável.Deleitava-me quando olhei para a cintura torneada de Helena,vi um volume em sua saia,observando mais,pude ver um brilho prateado e ao mexer daquelas belas ancas,reconheci finalmente,um revolver pequenino na cintura da menina.Ela esteve com aquilo o tempo todo,só agora eu vi.O volume que ele fazia era quase imperceptível,por ser pequeno.Não era difícil ela ter arranjado aquilo no cidade onde vivíamos.Arregalei os olhos e me levantei,ela se aprumou no assento do banquinho e perguntou o motivo de minha expressão atenuada,falei que não era nada,temi que tomada por um surto,fosse capaz de sacar a arma e disparar contra mim e também contra o inocente vendedor daquela pequena maravilha chamada cachorro-quente.
Comecei então a suar frio e perdi completamente a calma,a suicida estava disposta a ir as últimas consequências.A julgar pela arma,deveria estar decidida a findar sua vida,naquele momento,provavelmente me levaria de bandeja,caso eu escrevesse sua carta.De imediato,cheguei a conclusão de que para prolongar minha vida,era melhor eu ir adiando a finalização da carta,não seria problema,eu não escrevera nada ainda.
Depois de comer,Helena disse-me que conhecia um lugar ali perto,fiquei temeroso,pois quando nos dirigimos ao local,reparei que era um lugar isolado,um recanto perto de uma nascente,no meio de uma vegetação,afastada dos ruídos da rua.Perfeito ambiente para nossos corpos sem vida repousarem moribundos,até que dessem por nossa falta e viessem nos procurar.Parados ali olhando um para o outro,eu continuava a questionar o que havia na mente dela,que susurros e pequenos surtos são estes que a agridem e a incitam?Pauso o meu questionamento e corajosamente apresento outra questão para moça:
"-Onde conseguiu essa arma?"
"-Que arma,Rafael?"
"-Helena por favor,não subestime minha inteligência." De fato,ela dissimulava bem,porque surpreendeu-se muito,ao tocar na saia e ver o pequeno revolver na cintura.
"- Meu Deus!O quê isto está fazendo aqui?"
"-Por favor,Helena basta com essa encenação,diga-me,o que pretende com essa história toda?Já estou ficando cansado disso."Minha paciência se esgotava a medida que a raiva dela se inflamava.
"-Minha cabeça! Dói muito!"Foi só o que ela respondeu e de súbito,desengatilhou o tambor do revolver e soltou 5 das seis balas ao chão,deixou uma,apenas.Era evidente o que ela pretendia.Fez girar o tambor e o pôs em prumo para o disparo.Colocou em sua cabeça e mais uma vez,seus olhos reviraram-se,dessa vez ela disse:
"-A alma que me governa e o coração que me palpita,não serão acabrunhados...." Finalmente reconheci,esse texto,essas palavras que ela vomitava de quando em quando,então completei:
"-pela dúvida e nem tremerão de medo."
"-Rafael,ela indagou,como você sabia as palavras das vozes?"
"-Helena,isso é Macbeth,William Shakespeare.Você interpretou isso,a um ano,quando sua tia morreu,você disse que brigou por esse papel,era a peça favorita dela."
"-O quê está dizendo,eu nunca interpretei Macbeth!"
"-Acho que já seu qual é o seu problema,Helena.Você ta sofrendo de stress pós traumático.Sua mente criou uma série de idéias por que você foi atingida por uma dor profunda,a ação natural do seu subconsciente é achar uma maneira de acabar com sua dor."
"-Não,não,não,não...Você está errado!Eu ouvi as vozes muito antes de perder minha tia.A primeira vez foi no fim da minha infância,indo para a pré-adolescência,eu tinha já meus 12 anos!"
Então,um estalo abalou minha cabeça.Era evidente agora.Eu só havia me equivocado quanto ao diagnóstico.De fato,Helena tinha uma patologia.Não era stress,era Esquizofrenia.Lembrei-me de ter feito um texto relativo a doença certa vez,para um cliente.A esquizofrenia manifesta-se no iniciar da maturidade,seja na adolescência ou na idade adulta,antes dos 40.A doença se caracteriza por uma descaracterização ampla dos processos mentais.Delírios,alucinações,pensamento desorganizado,idéias baseadas no irreal,como sensação contínua de perseguição.Em Helena,vozes que não a deixam em paz,vozes que falam coisas de seu passado,o texto de Macbeth!Que doença cruel é essa,extremamente assustadora para quem a possui.Coitada desse linda,linda moça!Cheguei a cogitar a hipótese de deixá-la findar a sua vida.Tal doença é cruel demais!Mas recompus-me,deixá-la morrer é um pensamento que me faz sentir mal até hoje,só por te me deixando levantar essa idéia.Para salvá-la,que era meu plano desde o início,falei:
"-Helena,preciso levar você ao médico."
"-Acha que sou mentirosa e louca,não é?Sou! Sou mesmo louca!!!" Então a roleta russa começou,a garota apertou o gatilho três vezes em sequência contra sua cabeça,eu fechei meus olhos e tranquei as mãos nas três vezes,porém a bala não estava para ela,nisso ela apontou para mim e falou:"Sua vez!"Disparou,'TICK" nada aconteceu,implorei:
"-Para,Helena! Você precisa de ajuda! Eu sei quem pode te fazer acabar com essas vozes!"
"-Mentiroso! Acabou de dizer que estou tirando essas vozes de uma peça de teatro." TICK! Atirou de novo contra mim e nada.O mal agora,era que o próximo tiro era meu de novo e a bala estava lá.Desesperado,gritei:
"-Você é esquizofrênica,Helena!"A ouvir essas palavras,ela parou.Soltou a arma ao chão e ficou estática.Rompendo o curto silêncio,disse-me:
"-Minha tia,a que morreu,por parte de mãe.Ela tinha esquizofrenia."
-Considerações Finais-
O entendimento,a aceitação.O primeiro passo para a cura de um mal da psique humana.A bela,maravilhosa,gostosa,Helena.Uma moça atormentada por uma doença cruel.Seus pais não se surpreenderam,na verdade se culparam,pois sabiam que havia chance maior da doença se manifestar na garota,e vendo alguns sintomas no dia a dia,simplesmente ignoraram,pois temiam ter que reviver o sofrimento que tiveram com a perdida parenta.Preferiram se enganar e deixar estar,quase perderam a amada filha.Foi uma surpresa para nossos amigos,pretensos intelectuais,porém um mais alienado que outro.Quando Helena iniciou a internação e tratamento,íamos todos visitá-la,mas entrávamos de vez por vez,era perigoso que ela surtasse a ver-nos juntos.Ela se tratou e foi feliz.Isso é o que importa,estar vivo e lutando até o final chegar naturalmente.
Desisti de ser ghost writer depois disso,concluí minha graduação.Helena me salvou,eu não estava preparado para esse mundo escuro.Não desisti de ser escritor,isso graças a inspiração oferecida pela história de Helena,criei um dos meus mais memoráveis contos.Quanto ao ensaio...Estou fazendo,hoje já adulto inspirado por uma família feliz,vejo,minha esposa brincar com meu filho e lembro do ensaio, daquele que volto hoje a finalmente concluir,"O Ensaio Sobre a Vida e a Morte..."
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