segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Temores De Uma Geração

   Em janeiro de 1967 eu comecei a estagiar em um jornal de caráter duvidoso no Rio de Janeiro.E em 31 de março de 1964,três anos antes,houve um golpe contra o Presidente da Repúplica,João Goulart.
   O golpe de Estado marcou a influência política do Exército Brasileiro e a sua determinação de tomar o poder do país ao abrigo de uma doutrina de segurança nacional.Quem assumiu o cargo máximo
da nação foi o Marechal Castello Branco,com a queda de Goulart.
     Foi um período drástico de mudanças,não só para o país,pra minha pessoa também.Eu tinha acabado de completar meus estudos,na busca por um emprego e com pouca formação acadêmica,entrei
na gráfica do jornal.Não era muito "saudável" trabalhar em um jornal naquele período,mas eu precisava de grana,na verdade,todo mundo precisa de grana.Mas eu queria grana porque estava muito afim de
comprar um carro.Queria impressionar minha namorada,Talita.Não que eu precise impressioná-la mas eu quero fazer isso.Amor de mulher tem de ser renovado a cada minuto.
     O jornal se chamava "Diário Nacional".E todos os colunistas,formadores de opinião,mamavam nas tetas do governo ou simplesmente tinham medo de bater de frente com a constituição atual.Era uma época
estranha,o exército e a polícia militar tinham muitos direitos,como o de te prender e torturar por você ser suspeito,agora suspeito de que não sei.Não sou antenado nos assuntos politicos,mas trabalho em um jornal,
acabo lendo quando o papel acaba de sair da prensa.Era essa a situação em que as coisas se encontravam.
      Hoje irei encontrar Talita.Nos conhecemos na escola.Terminamos no fim do ano,na festa de formatura,onde bebi demais,coisa que nunca tinha feito antes.Acabei dançando com outra menina,é incrível como o fato
de você estar namorando,atrai mais mulheres pra você,acho que elas fazem isso para se provocar.A menina com a qual eu dancei me beijou,Talita não viu mas suas amigas viram,foi uma tragédia.O amor de uma mulher
se transforma em ódio com uma facilidade tremenda.Descobri isso já bem jovem,mas o que sentíamos um pelo outro era mais forte do que qualquer fraqueza,nesse caso,fraqueza exclusivamente minha.
      Umas semanas depois estávamos juntos novamente.Ela aceitou minhas desculpas,após eu insistir por dias e noites,tardes e manhãs,incansávelmente.O sentimento dos jovens amantes tende a ser mesmo mais caloroso
e arrebatador,mas eu não tinha dúvida de que eu e Talita éramos um caso diferente de todos os outros.Era um tipo de amor que só quem já sentiu poderia entender minha descrição,para os demais é inútil tentar entender.
      Por todos esse motivos,eu contava as horas no trabalho para sair e ir busca-lá na faculdade.Ela cursa direito,é uma garota muito inteligente e antenada,acredita na democracia e sempre tenta puxar assunto comigo sobre
política,eu desconverso.Ela percebe meu constrangimento e logo muda de assunto.
       Findado o expediente eu me apresso,ando rápido,mas não corro.Parece que está havendo um protesto aqui na rua,não quero estar perto da confusão.Estão prendendo um monte de gente.Dizem coisas terríveis sobre o tratamento
na prisão.Prefiro nem pensar nisso.
       Chego 10 minutos antes da aula de Talita terminar.Espero impaciente,olhando para o relógio a cada 30 segundos.Finalmente,lá vem ela.Com seus cabelos encaracolados e pele morena,acho que ela é exatamente o meu tipo de mulher.
Afinal de contas eu não consigo imaginar outra mulher que não seja ela.Meu coração acelera nos rítmos dos passos que ela dá,que se tornaram mais rápidos ao me ver,vindo em minha direção.O abraço dela,apesar de apertado,toca meu corpo como
se fosse um leve toque de uma fada.Nosso beijo é a materialização de tudo que sentimos.Eu olho para ela e pergunto:

            "-Estou sonhando?"ela ri e responde:

            "-Espero que não.Do contrário,quero dormir para sempre!"

         Vamos ao local onde sempre a levo,debaixo da mesma árvore de sempre,na praça próxima a casa dela.Quando estamos juntos o tempo passa vagarosamente,como se ele não tivesse pressa de se mover.Nos sentamos encostados na árvore,
eu passo minutos olhando para o rosto dela de perfil e sentindo sua quente respiração.Ficamos ali por algumas horas,conversando sobre nossos assuntos típicos.Começa a escurecer e eu preciso levá-la até sua casa.O tempo passou para o resto do
mundo,mas para nós,parecia que tínhamos acabado de chegar ali.
          No portão ela me diz algo sobre o próximo fim de semana,não prestei atenção no que ela falava,nos beijamos e nos despedimos com juras de amor eterno.Sinto como se fossemos ficar dias afastados,mas eram só algumas longas horas até
o dia seguinte.
          Em casa sento-me a mesa com minha tia para o jantar.Fui criado por ela desde quando perdi meus pais num trágico acidente de automóvel,eu tinha apenas 3 anos.Depois de comer vou ao meu quarto,mas sou obrigado a voltar quando toca o telefone.
Minha tia atendeu e disse que era alguém do jornal querendo falar comigo em urgência.Não faço idéia de quem possa ser ou de que se trata o assunto:


       "-Alô?"

       "-Você é Davi,certo?Da gráfica..."

       "-Sim,sou eu.Quem fala?"o homem falava com a voz em baixo tom.

       "-Eu sou Cristiano Andrade, colunista do Diário.Preciso de um imenso favor seu."

      
 Não reconheci a voz do sujeito porque nunca a tinha ouvido antes.Mas o nome dele rondava todo jornal,ele era o único colunista que ousava soltar algumas frases de duplo sentido,que iam contra a filosofia do jornal e do governo.Fiquei precavido ao ouvir o
nome dele:

       
         "-Olha meu senhor,não sei se posso ajudá-lo não."

         "-Escute rapaz,não vou lhe meter em problemas,só quero que me encontre amanhã bem cedo.Não precisa se preocupar.Basta chegar na gráfica minutos antes dos demais funcionários,ok?"

         "-Isso eu posso fazer,não quero problemas,o senhor entende,não é?"

         "-Perfeitamente meu jovem,você será uma ajuda muito significativa para mim."


      O cara desligou o telefone,fiquei meio preocupado.Mas dormi tranquilo voltando a pensar em Talita.Sonhei com ela,como todas noites.
      Na manhã seguinte levantei cedo,engoli meu café da manhã e fui trabalhar.Me lembrei da ligação de Andrade na noite anterior,me apressei,estava curioso para saber o que ele queira que eu fizesse.Ele ja estava lá quando cheguei.Me recriminou dizendo que
eu demorei.Na verdade eu só me lembrei da ligação dele quando já estava no caminho daqui.
      O homem estava muito agitado e olhava para os lados.Sacou um envelope da sua pasta e me deu,me recomendou com essas palavras:

         "-Não leia o que está escrito,apenas entregue para Jair,o cara que trabalha com você na gráfica,ele assumirá a responsabilidade de tudo e saberá o que fazer.Estou te pedindo isso porque o cerco se fechou,meus passos estão limitados,mas isso é de grande importância
para o país."

     Olhei para ele confuso e desabafei:

         "-O que é isso?Disse ao senhor que não quero confusão,todos sabem como estão as coisas no Brasil."

         "-Não se preocupe rapaz,nada acontecerá com você.Já comigo...Tive a sorte de ter escapado.Fiquei dois dias preso!Me mativeram acordado todo esse tempo,isso causa danos no cérebro!Fiquei amarrado a uma dura cadeira e fui surrado a cada 3 horas que passavam!Minha
casa foi invadida e minha irmã raptada!Não sei o que podem estar fazendo com ela agora!Não quero que mais ninguém passe por isso,Davi.Estes documentos devem ser entregues a Jair,entendeu?"

         "-S-Sim!"


    Fiquei completamente amedrontado,com a descrição que Cristiano Andrade me dera da prisão.Resolvi ajudar mesmo assim.Porém nesse momento,como se houvessem preparado tal emboscada,apareceram policiais militares montados à cavalo.Cristiano olha para mim com os olhos
saltados ao ver os oficiais.A expressão dele refletia seus pensamentos como se eu os pudesse ler.Mas nem precisei tentar adivinhar o que se passava na mente de Andrade,pois ele exclamou:

             "-Corra Davi! Livre-se do envelope!"

  Se eu fosse um pouco mais atlético talvez não teria sido tão covarde a disputa de velocidade minha,com os cavalos dos militares.Os homens vêm em nossa direção apressadamente,era evidente que eles sabiam quem Cristiano Andrade era.O soldado da frente acertou a cabeça do jornalista
em cheio com seu cacetete e o segundo me bateu na nuca com a sua arma metros a frente.Antes de ser atingido pude jogar em um arbusto o envelope que recebi de Andrade.Sem fazer idéia do que poderia conter nele.Com a pancada que recebi fui ao chão e antes de apagar pensei que seria
melhor se eu soubesse o que havia no envelope,pois poderia dizer algo aos homens sem que eles precisassem me interrogar duramente.Sem saber de nada era pior,eu serei torturado e poderei ter minha familia perseguida e atiginda.Penso em Talita,meus olhos se fecham e eu não vejo mais nada.
  Acordo amarrado a uma cama,com Andrade me fazendo despertar.Ele está ao meu lado na mesma situação que eu,na cama ao lado da minha:

            "-Não se preocupe garoto,você sairá daqui.Eu vou assumir toda a responsabilidade.Soube por um dos soldados que minha irmã está viva,porém eles fazem coisas imundas nesse lugar,prefiro não imaginar o que pode ter acontecido a ela.Eu negociarei a sua liberdade e a dela,pela minha
total colaboração,também os subornarei.Fique tranquilo."

            "-M-minha família!Talita..." minha voz está trêmula e minha cabeça leteja.

            "-Desculpe por envolvê-lo nisso,mas fique calmo.Não há o que temer."

  Não consigo confiar em nenhuma das palavras que aquele homem me diz.Minha cabeça ficou confusa,acho que por causa da pancada.Mas consigo raciocinar o bastante,para ver que Andrade era pirado.Provavelmente ficou assim por causa do cárcere no qual foi submetido.Ele só me contou que
ficou preso hoje,quando nos encontramos,se ele tivesse me dito antes pelo telefone,eu jamais aceitaria colaborar com ele.O tio de Talita também foi preso,ficou meses detido e saiu completamente louco.Dizem que fazem testes no cerébro das pessoas,coisas que se faziam na Segunda Guerra Mundial.
Ouvi descrições de salas onde as pessoas ficam o tempo inteiro acordadas ao som de músicas altas e obrigadas a assitirem imagens numa tela grande.Eu começo a lamentar a maldita hora em que topei colaborar com este louco.
  O lugar onde estamos é um tipo de quarto muito pequeno,não existe nada aqui além das duas camas nas quais estamos presos.Menos de dez minutos depois de eu ser despertado por Andrade,a porta se abre e por ela entram dois caras vestidos de branco e sujos do que parece ser sangue,a vestimenta
deles lembram as de cirurgiões,mas sei que eles estão mais para açougueiros do que pra médicos.O lugar é claustrofóbico,sem janelas,apenas uma porta e uma fraca lâmpada no centro do teto.Os homens levam Andrade,ele vai pacificamente sem demonstrar resistência.Fico ali por horas.Me debato na cama
tentando me desamarrar,estou ali por muito tempo,não me preocupo comigo mas com Talita,eles podem estar atrás dela e da minha tia.Não faço idéia de que horas são,não sei se ainda é dia ou se já é noite.Sinto muita fome e sede.Olho para meu braço e percebo que estou recebendo algo na minha veia,é soro.
Ou será que é alguma substância alucinógena?Como eu só fui perceber agora que estou recebendo isso na minha veia?Estou muito confuso e desorientado.Fecho os olhos em prantos,acabo adormecendo quando as lágrimas param de cair.Acordo com uma outra pessoa em pé na minha frente fazendo anotações.
Esse sim se parece um médico,deve ter sido enviado aqui para ver meu estado,se posso suportar torturas talvez.Ele me chama pelo nome e diz:

           "-É Davi,foi uma forte pancada.Você precisa descansar.Sua tia foi localizada..."

            "-Seus monstros!Fiquem longe dela!Não temos nada a ver com isso!Andrade não disse nada a vocês?Eu não sei de nada!"

            "-Preciso lhe dar uma dose de calmante,Davi"

            "-Não!Parem de me drogar seus malditos!"

   A forma sarcástica que ele se dirigiu a mim me fez ter certeza de que tinham capturado minha tia,temi por Talita.Preciso sair daqui.O cara me injeta o remédio e eu apago novamente.Me sinto impotente.
   Quando acordo,estou mais inquieto e preocupado.Eu entregaria minha vida para manter a segurança de minha namorada.Ela seria amada por outras pessoas,somos jovens e uma garota linda e adorável como ela,encontraria homens talvez até mais dignos para ela do que eu.Não é difícil se apaixonar por Talita,
pois ela é absurdamente amável.Porém a idéia de imaginar a vida dela com outro homem que não fosse eu,era mais dolorosa do que a própria prisão e a morte.Olho para meus braços e me surpreendo ao ver que não estou amarrado.Leio no recepiente que está ligado a minha veia a inscrição que revela ser soro,aquele
líquido que vem pelo meu braço.Puxo a águlha e me livro.Minha cabeça dói muito.Me levanto e sinto tonturas,provaveis efeitos dos alucinógenos que me injetaram enquanto estive aqui.Perdi a noção do tempo,acho que estou aqui a dias,não me trouxeram alimentos,isso explica minha fraqueza e também por esse motivo me
deram soro,para que meu corpo não ficasse muito debilitado.Ando lentamente até a porta,forço a maçaneta e ela se abre.Vejo um vasto corredor a minha frente.Este lugar é muito grande e parece um labirinto.Está cheio de pessoas,elas andam rápido e conversam,não consigo fixar meus olhos em nenhum ponto.Parece que sou
míope.É difícil reconhecer algum rosto.Então,uma mulher se aproxima de mim,não sei quem é,quando olho pro rosto dela vejo apenas algo embaçado e desforme.Passo a mão pelos olhos e passo a enxergar um pouco melhor.A moça se identifica:

           "-Davi,eu sei que está dificil enxergar e que você está tonto,são as drogas,mas precisa confiar em mim.Eu sou Amanda,irmã de Cristiano Andrade."

            "-Andrade,onde ele está?"

            "-Ah,ele sabe se cuidar.Precisamos sair daqui o mais rápido possível.Você sofreu uma forte pancada na cabeça,está mantido aqui desde de ontem a tarde.Sei que você não deve estar bem,porém precisamos nos apressar.Está acontecendo uma rebelião aqui."

   Olho para os lados e vejo as pessoas correndo por todos os cantos,atrás delas vêm oficiais militares com cacetetes.Amanda me puxa pelo braço e começamos a correr em disparada,com ela guiando o caminho.Olho para cintura dela e vejo que porta uma arma.Paro e solto a mão dela do meu braço.Ela pergunta:

            "-O que foi?"

           "-Prometa que quando sairmos daqui vai me levar até minha casa.Acho que não conseguirei sozinho.Estou muito atordoado."

           "-Sim,prometo.Além disso você também precisa me ajudar.Tem que me dizer onde está o envelope que meu irmão lhe entregou."

  Não digo a ela,mas não faço idéia de onde coloquei o envelope.Não consigo lembrar.Quero chegar em casa e saber logo se minha tia está segura,depois,vou procurar por Talita.Na mesma hora que penso nela,ouço a sua voz,sussurrar baixinho:

           "-Estarei aqui com você Davi,o tempo todo.Não sairei"

  Continuo correndo e olhando para os lados,quase caio,não a vejo em lugar nenhum!Mas além de ouvir sua voz,tive até a impressão de ter sentido o calor da respiração dela,bem perto de mim.Amanda me olha,preocupada:

           "-Está alucinando,Davi?"

           "-Acho que sim,mas já passou.Isso é assustador!"

           "-Sei como é,mas precisa ser forte.Estamos quase na saída."

  Quando saimos vejo a rua em que estamos,se parace com o centro da cidade,mas não consigo reconhecer exatamente onde.Amanda cumpre o que prometeu e me acompanha até minha casa.Eu bato na porta mas ninguém vem abri-lá,então,empurro a porta e entro.A casa está toda reverida,móveis quebrados e coisas no chão.
  Entro em desespero ao subir até o quarto de minha tia e a vejo em sua cama.Que tipo de gente faz isso com senhoras?Minha doce tia estava muito machucada,mas permaneceu acordada e disse que estava me esperando,pois sabia que eu viria.Começo a chorar e pego em sua mão,enquanto ela me diz:

        "-Davi,estamos aqui com você." Não entendo o que ela quer dizer mas a conforto:

        "-Eu sei tia,descanse.Vou levá-la para um hospital."

   Amanda me ajuda a levar minha tia até um hospital próximo,lá vejo uma mulher muito estranha.Não consigo acreditar em meus olhos,mas ela se parece com minha mãe.E está usando a mesma roupa que usava na foto que eu tenho dela,ao lado de meu pai.A mulher entra por uma porta e me chama.Vejo que é a saída.Corro até lá
e abro a porta,uma luz forte quase me cega.Eu caio no chão e começo a ter espasmos,desmaiei.Quando acordo estou na porta da casa de Talita.Amanda me explica que tive convulsão,por causa do dano que sofri no cérebro.Ela me trouxe até ali.Entro na casa e vejo mesmo cenário que vi na anteriormente,tudo revirado.Evito tentar imaginar
o que pode ter acontecido.Na sala,vejo o pai de Talita com a sua esposa desacordada no chão.Ele olha para mim com um misto de desespero e fúria:

         "-Por quê se envolveu nisso moleque?Olha o que você fez!"

         "-E-eu sinto muito senhor,ó Meu Deus...!"

         "-Não fique aí feito um idiota!Entregue a eles o maldito envelope!Minha filhinha...Talita..eles a levaram!"

    Arregalei meus olhos ao ouvir o nome dela.Peguei a chave do carro que eu já sabia onde o pai de Talita guardava,entreguei a Amanda e nos dirigimos até o "Diário Nacional".
    Chegando lá não perco tempo e me encaminho para a entrada dos funcionários,acompanhado por Amanda.Ao nos ver Jair vem em nossa direção,dá um forte abraço em Amanda e nos chama para um lugar mais reservado.A jovem pergunta a Jair:

          "-Está com o envelope?"o homem responde:

          "-Pensei que estivesse com seu irmão ou melhor com Davi."

    Fico sem reação pois não sei onde deixei.Minha face me denuncia:

           "-Onde está,Davi?" me pergunta Amanda.

          "-Lamento..." respondo,sem coragem de olhar nos olhos deles.

          "-Davi,é importante que encontremos o envelope.Podemos tirar uma cópia dele e negociar a cópia pelo resgate de Talita."

          "-Eu sei! Mas eu não consigo me lembrar...Por que fui me envolver nisso tudo? Eu não queria isso..."

          "-É tarde para lamentações,rapaz.Agora por favor,concentre-se."

     Nossa conversa é pausada pelo som de sirenes e explosões.Tiros e gritos são ouvidos.Saimos da sala que estávamos e vemos militares capturando gente e disparando contra as máquinas de impressão que haviam ali.Um homem uniformizado como alguém de alta patente vem em nossa direção.Ele chama Amanda e Jair.Os três conversam,estão bem agitados,
até que Amanda olha para mim e entrega sua arma para o fardado.Não compreendo sua ação,mas em um ato de extrema covardia o sujeito dispara contra Jair.Amanda começa a insultar o homem demonstrando surpresa em sua atitude e ele repete seu ato,matando ela também.As duas pessoas que eu sabia que poderia confiar foram assassinadas a sangue frio.A mulher
que me criou está no hospital e a que eu mais amo está raptada.Medo e desespero correm pelo meu corpo como que guiados pelo meu sangue.O sujeito anda em minha direção e eu agarro uma barra de ferro que estava no chão.Ele cai na gargalhada e se apresenta:

          "-Eu sou o coronel Tavares.Você deve ser Davi.Se tornou muito conhecido rapaz.Serei breve,traga-me o envelope dentro de uma hora para esse endereço,sua namoradinha estará lá esperando.Seja pontual,por favor."

     Recebi um cartão dele que continha um endereço.Os oficiais saem do local levando alguns prisioneiros.Choro sobre os corpos de Jair e Amanda.Vejo que a arma dela fora abandonada ao chão pelo coronel.Guardo ela comigo e vou para fora da gráfica.
     Sento-me desesperado junto aos arbustos pensando em meios de usar aquela arma para acabar com meu sofrimento,me sinto covarde.Nessa hora sinto uma mão apertar a minha,fecho meus olhos e tenho uma sensação de queda.Abro novamente os olhos e me dou conta de que alucinei novamente.Minha cabeça dói quando tento me lembrar do paradeiro do envelope.
Ouço uma linda canção,assobios na verdade.Observo pássaros assobiarem esta canção,estranho o assobio é igual ao de minha tia.Os passarinhos estão entre os arbustos da calçada,me aproximo de lá e começo a sorrir.O envelope esteve ali o tempo todo,agora me lembro que o atirei ali quando levei a pancada do guarda.Estava determinado em abri-lo e quando o fiz,para
minha surpresa estava tudo escrito em uma língua que eu desconheço.Provavelmente era para não ser lido se caísse em mãos erradas.Parecia ser latim.
       Aliviado agora,apanhei as chaves do carro no bolso de Amanda e fui para o endereço no papel.Tive nova tontura,fechei os olhos e quando os abri ja estava bem próximo do lugar.O efeito de entorpecentes somado ao trauma no meu cérebro fazia tudo parecer tão irreal.
       O lugar onde chego é um estacionamento vazio,apenas um carro está lá.Minha visão começa a me trair,tudo fica confuso.O céu se torna um borrão vermelho como sangue.Coronel Tavares sai do carro com a pessoa que me faz recuperar meus sentidos.Talita.Ela está tão linda quanto da ultima vez em que a vi.Eu me aproximo e vejo bem de perto o rosto do coronel,
me arrepio.O coronel Tavares se parece com meu pai que eu não me lembro bem,mas sei que ele era do Exército.Entrego-lhe o envelope,ele liberta Talita entra no carro e diz:

            "-Muito bem meu filho,só precisa se levantar agora."

      Não compreendi suas palavras mas não me importei,queria abraçar Talita.Tentei lhe tocar mas ela permanecia inerte e eu não conseguia encostar em seu corpo.Meus braços pareciam transpassa-la.Estou drogado ou enlouqueci de vez?Isso tudo parece um pesadelo.Então ela me olha e diz:

            "-Exatamente Davi.Você não veio aqui para me salvar.Eu lhe touxe até aqui,para que você seja salvo."

            "-O que está dizendo meu amor?Não entendo."

            "-Acorde Davi!"   
 
   De repente tudo passou a fazer sentido.A voz que eu ouvi de Talita e sua respiração,o assobio de minha tia,ambas dizendo que estavam comigo.A imagem de meus pais,todo esse surrealismo.Entendi tudo.Comecei a fazer força com todos os músculos do meu corpo,mas eles pareciam travados.Então apanhei a arma que eu carregava,minha amada me olhou e disse:

             "-Vai ser como nas tragédias teatrais,que costumamos assistir." ela tomou a arma de mim e atirou contra si.Fiquei assustado,mas recuperei a arma e fiz o mesmo dizendo:

             "-Meu Deus!É bom que isso seja um sonho!"

    Abri meus olhos,estava suado e com meu corpo dormente,respirei fundo como se estivesse ficado muito tempo sem ar.Na minha frente estava numa poltrona minha tia e a meu lado estava Talita.Ela vê que eu estou acordado e sorri com satisfação.O sorriso dela é uma das imagens mais belas e tranquilizantes que eu jamais vi na vida.Elas chamam por médicos e enfermeiros.
    Estive em coma por 4 dias,desde que levei a pancada de dois assaltantes montados a cavalo.Roubaram minha carteira.Cristiano Andrade,que estava comigo foi exilado,segundo o que o pessoal do jornal informou a minha tia.Os assaltantes foram presos e confessaram que usavam disfarces militares para efetuar roubos naquela região a semanas.Minha cateira foi
recuperada.Eu apenas vivi todos os meus maiores temores e frustrações em minha mente,durante os ultimos 4 dias.
     Tudo não passou de um sonho ruim.Recebi alta no hospital no dia seguinte.Talita esteve ali o tempo todo comigo.Eu agradeço a ela e digo que seu amor me salvou de um pesadelo.Ela me fala que eu sempre digo coisas "fofas".Eu sorrio e me sinto feliz por ter encontrado meu verdadeiro amor.
     Volto para minha rotina.Em um dia comum de trabalho resolvo ir até os arbustos próximo da calçada.Lá vejo o maldito envelope.Entro na gráfica,pego uma garrafa de alcool e uma caixa de fósforo.Atiro fogo em toda aquela vegetação,sem tocar naquele indesejado pedaço de papel.Andei procurando por Jair na gráfica mas ele pediu demissão,desde o ocorrido.Penso
no que deveria conter aquele envelope.Mas a vontade de me livrar dele e meu subconsciente criativo me convencem a deixá-lo queimar e esquecer toda essa historia,de uma vez por todas.

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