O bar está fechando,mas entra um engravatado de meia idade fumando um charuto.Henrique está quase afogado numa garrafa de vodca.
O homem pede duas cervejas e pergunta se pode se sentar a mesa com Henrique.Com a visão turva Henrique olha para o sujeito.
Um homem de terno e bem aparentado.O jovem Henrique responde:
"-A menos que você seja o Diabo querendo me comprar a alma,sente-se."
"-Puxa,estou aparentemente pior do que eu imaginei,a ponto de ser confundido com senhor das almas danadas."
"-Há!"Senhor das almas danadas."É filósofo?Ou poeta?"
"-Suas deduções deixam a desejar.Errou as três que tentou até agora.Pode justificá-las?"
"-Poetas e filósofos involuntáriamente jogam pérolas aos porcos,como você fez agora,exacerbando seu prentensioso
vocabulário.E eu vi "O Advogado do Diabo",uma bela atuação de Al Pacino,vale ressaltar.Você,com esse seu terninho italiano está
bem no esteriótipo do anjo rebelde moderno.Além de tudo isso,não seria estranho se o mesmo viesse me aborrecer a esta altura."
"-São justificativas consideráveis,apesar de errôneas.Garoto,por acaso anda esperando tal visita?"
"-Não foi o que eu disse."
"-Eu ouvi o que você disse.Posso me sentar ou não?"
"-Já está com duas cervejas na mão,veio aqui na esperança de convecer alguém a beber contigo.Quer conversar sobre seus
problemas,vá a um psicólogo."
"-Não acredito em psicologia..."
"-Há! Quando eu digo isso,as pessoas me chamam de ignorante.Meu psicólogo é essa cristalina garrafa de vodca! Sente-se,bom homem,
vamos então filosofar!"
"-Sento-me então e lhe oferto essa cerveja em agradecimento pela companhia de sua jovialidade,que fora preconcemente perdida por mim.
A que idade está jovem?"
"-Idade...Sabe que existem crianças carentes que antes mesmo da puberdade ja viveram muito mais que homens feitos,porém nascidos em berço de ouro?
A sua idade está na sua mente e no seu agir.Que tal pularmos a idade e irmos para apresentações?Sou Henrique não estudo,não trabalho.Quem és tu?Homem de
negócios?"
"-Agora acertou.Veja meu cartão."
"-Realmente gostaria,mas creio que estou mais embreagado do que aparento.Meus olhos me traem e as letras desse cartão parecem inquientas como um cardume.
Deixa ver...Dr. Augusto.Poderia apagar seu cigarro Augusto?Odeio o maldito cheiro dessa fumaça."
"-Não é cigarro.É um charuto e é cubano."
"-Nossa,muito bem observado.Lamento não ter feito tal distinção.Também pudera,meia garrafa de vodca me dobra como um trator dobra concreto."
"-Vamos igualar então essa situação.Passe-me a vodca."
"-É um mestre.Num gole fez sumir o restante do ardente líquido."
"-Ah...Sim,Henrique.Estaremos em situação parecida em poucos segundos.Explique-me,a que motivos se devem sua bebedeira,vou lhe adiantar meus motivos
para tonar justa minha indagação..."
"-Não faça isso,viemos aqui para esquecermos frustações.Ignorá-las com covardia simplesmente.Não para reavivarmos quaisquer que sejam nossas tribulações.
O que é a embreaguez,se não a fuga de uma realidade muitas vezes ruim?Porém existem os momentos em que bebemos de felicidade.Para aumentarmos nosso prazer
e estado de glória.Entretanto,os motivos que nos trazem ambos sozinhos para cá,evidentemente são os da primeira opção que sugeri."
"-Com toda certeza. Hump!(soluços).Vou lhe ser sincero,menino.Existem questões que são mistérios para a humanidade.Você sabe me dizer por que índios não têm barba?"
"-Talvez Darwin explique..."
"-Tem visto Darwin ultimamente?"
"-Temo que não..."
"-...Eis a questão!"
"-Hamlet."
"-Não,Shakespeare.Afinal o autor pensa antes de escrever,certo?Logo ele pensou antes do personagem."
"-É,tens razão.Você bebeu o resto de minha vodca e a cerveja que me trouxe já se esgotou.Não posso tecer um pensamento digno sem mais desse líquido que lubrifica minha mente."
"-Garçom,mais duas cervejas.Podemos prosseguir?"
"-Certamente.Sobre o que falávamos,Agusto?"
"-Sobre a felicidade,caro Henrique.Já experimentou da dita cuja?"
"-Seria ela um mero estado passageiro ou seja,variável e momentânea,ou seria uma constante,algo que se possa obter para sempre,que mesmo alternada por tristezas e demais emoções
opostas,esteja fixada como uma tatuagem na pele de um skinhead?Creio que já a experimentei,durante meses,enquanto estive com ela...Isso lhe afirmo."
"-Uma mulher! Que outro motivo faria um jovem viver como um velho?Mas enfim...respeitarei sua privacidade."
"-Ficarei grato com isso."
"-Pois bem Henrique.Direi o que é a felicidade.Confundida muitas vezes com alegria,paixão e prazer.Porém,esses são estados temporários como você havia dito anteriormente.A felicidade não.
Ela só pode ser definitiva.Não deixando assim de ser um estado de espírito,mas porém mesmo estando na mesma condiçao de tal,é duradoura.Contentamento e alegria,é o que muitos sentem e chamam
de felicidade.Não cabe a mim definir o que você sentiu.Mas eu lhe digo.Sou um homem feliz,mas estou momentaneamente frustrado.Tenho certeza de que entendeu minhas palavras,estou certo?"
"-Sim,está.Apesar de bêbedo consigo entender sua prosa.Afinal,como eu,você é o típico alcólatra que estando tonto,confuso e impulsivo,consegue dissertar e falar bem sem embolar as palavras
que seu cérero expele pela sua boca,mesmo que não faça sentido."
"-Em suma,todas as sensações que remetem a felicidade são buscadas diariamente por cada ser humano,ao longo de toda a sua existência."
"-Quem em sã conciência diria que não deseja felicidade,Dr.Augusto?"
"-De fato,onde estaria o homem se não fosse ao menos capaz de procurar sua plenitude?"
"-Dante Alighieri nos responderá,Dr.,com sua obra prima da literatura mundial:
"VAI-SE POR MIM A CIDADE DOLENTE,
VAI-SE POR MIM A SEMPITERNA DOR,
VAI-SE POR MIM ENTRE A PERDIDA GENTE.
MOVEU JUSTIÇA O MEU ALTO FEITOR,
FEZ-ME A DIVINA POTESTADE,MAIS
O SUPREMO SABER E O PRIMO AMOR.
ANTES DE MIM NÃO FOI CRIADO MAIS
NADA SENÃO ETERNO,E ETERNA EU DURO.
DEIXAI A ESPERANÇA,Ó VÓS QUE ENTRAIS."
"-Provavelmente é onde estaríamos condenados,jovem Henrique.E leríamos também nós,esses dizeres dois quais acaba de citar.Assim como Dante leu ao chegar na porta do Inferno,tais inscrições que lá se
encontram.No átrio do inferno,onde são punidos os ingnavos;os que não fizeram o Mal,mas foram relaxados na escolha do Bem.Estariam lá também os ignorantes que foram relaxados na busca pelo saber e pela própria
felicidade?Por nos fazer filosofar então,proponho um brinde "A Divina Comédia" de Dante!"
"-Entendeu meu ponto!Brindemos,então!"
"-Cabe a nós iludir nossa tristeza quando ela nos bater a porta.E buscarmos a felicidade sem perder a esperança!"
"-Belas palavras,garoto.Aliada a felicidade o que devemos buscar igualmente?"
"-O saber!Devemos aprender a todo momento.A vida deve ser baseada na busca pelo conhecimento."
"-E como se busca o saber,Henrique?"
"-Buscando a verdade,o saber é a verdade incontestavel!"
"-E quem detém todo o saber?"
"-Deus?"
"-Exatamente!Você me orgulha rapaz.Você crê na existência do ser que possui todo o conhecimento?"
"-É aceitavel...mas não foi provado ainda..."
"-Farei isso por você.Te darei argumentos,jovem filósofo."
"-Ah! Estou dando ouvidos a um bêbado! E não me chames de filósofo."
"-Cala-te e ouvi-me.Defenderei uma tese de Tomás de Aquino.Ele se utilizou do pressuposto de "movimento".Partindo da idéia de que tudo que se move é movido por outro.
Pois bem,raciocina-se:"se aquilo pelo qual é movido por sua vez se move,é preciso que também ele seja movido por outra coisa e esta por outra.Mas não é possível continuar ao infinito;do contrário,não
haveria primeiro motor e nem mesmo os outros motores moveriam como,por exemplo,o bastão não move se não é movido pela mão.
Portanto,é preciso chegar a um primeiro motor que não seja movido por nenhum outro, e por este todos entendem Deus." "
"-Muito vago o seu argumento."
"-Vou apresentar outra prova baseada em raciocínio,basta pensar pra você constatar a existência de Deus:
"Constatamos no mundo sensível a existência de causas eficientes. É, entretanto, impossível que uma coisa seja sua própria causa eficiente, porque, se assim fosse, esta coisa existiria antes de existir, o que não tem nenhum sentido.
Ora, não é possível proceder até o infinito na série de causas eficientes, porque, em qualquer série de causas ordenadas, a primeira é causa intermediária e esta é causa da última, quer haja uma ou várias causas intermediárias.
Com efeito, se suprimirdes a causa, fareis desaparecer o efeito: portanto, se não há causa primeira, não haverá nem última, nem intermediária. Ora, se fosse regredir até o infinito dentro da série de causas eficientes, não haveria causa primeira,
e, assim, não haveria também nem efeito, nem causas intermediárias, o que é evidentemente falso. Portanto, é preciso, por necessidade, colocar uma causa primeira que todo o mundo chama Deus”.
Essas palavras não são minhas Henrique,são de Tomás de Aquino que dedicou sua vida ao estudo e a filosofia."
"-Certo,sei que você não espera mudar minha forma de pensar assim de uma maneira tão repentina.Eu conheço muitos estudos que apresentam a existência de um "criador".Porém vejo que provavelmente você segue uma
orientação religiosa.Eu tentarei desafiar suas convicções,dizendo: "Se Deus existe e criou todos as coisas,Ele é mal.Pois criou o Mal e permite o sofrimento a todos nós."
"-Convicções...Você vai me perdoar por mais uma vez eu ter que lhe provar o contrário usando palavras que não são minhas.Usarei as palavras que alguns dizem ser de Albert Einstein.Com isso lhe pergunto Henrique,o frio existe?"
"-Mesmo estando bêbado,eu posso senti-lo,logo,sim o frio existe meu caro."
"-Na verdade meu jovem,o frio não existe.De acordo com as leis da física,o que chamamos "frio" é na realidade a ausência de calor.E a escuridão?Ela existe?"
"-Claro que existe,seu coroa pinguço!"
"-Você está enganado.A escuridão também não existe.Ela é na realidade a ausência de luz.A luz nós podemos estudar mas não podemos o mesmo com a escuridão.Deus não criou o mal.O mal é o resultado do que acontece na ausência de Deus."
"-Humpf...Eu preciso de mais uma dose."
"-Se fizer isso,certamente entrará em coma,rapaz.E eu te acompanharei.Garçom! Traga-me duas doses do seu melhor conhaque!"
"-Ah...antes desse último gole de lucidez,vejamos a que ponto chegamos...sobre o que conversávamos mesmo?"
"-Al Pacino,Darwin,Shakespeare,Dante,Aquino....Falamos de artes,filosofia e não consigo lembrar do que mais...Mas estou certo de que a conclusão que chegamos é a de que precisamos de momentos como este,de realidade suspensa,melhor fazer isso com alcóol.
Pode parecer fraqueza mas nada melhor do que limpar a mente e começar do zero."
"-Que prazer conversar com você Dr.Augusto.Foi como formatar meu HD.Bebamos no três: um!"
"-Dois!"
"-Três!"
Glup! Ambos viram todo o conhaque em um único gole.Henrique acorda na calçada,horas depois.Agusto desapareceu.As únicas coisas que fazem Henrique ter certeza de que viveu tudo o que lhe diz a memória turva,são um cartão de um empresário chamado Augusto e uma
dor de cabeça dignamente platônica.
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