terça-feira, 1 de maio de 2012
A Morte de Jango
Rio de Janeiro, Base Aérea do Galeão, final da década de 70.
Quando li o telegrama do general, quase ri. Mas faz parte do serviço de inteligência do DOI/CODI, tem dessas coisas. O documento oficial me convocando para a missão veio em um telegrama assinado por uma tal Virgínia Valadares, deve ser alguma ex-esposa do general. Ser secreto, é um charme do meu serviço. Ao lê-lo, apressei-me, vi que era urgente. No documento oficial, que havia sido disfarçado de telegrama simples, dizia que eu tinha uma missão de comprometimento, ou seja, eu teria de executar alguém. Cheguei rapidamente na base militar, estou há quase 40 minutos esperando o General Figueira me atender em sua sala. Finalmente, depois de já ter cantarolado o Hino Nacional umas 10 vezes, eles me chamam. Figueira começa:
-O caso é simples, João Goulart está vivo.
-O quê? - Não ouvi mesmo o que velho falara, não foi uma daquelas perguntas que fazemos, mesmo tendo ouvido, só para ter certeza do que ouvimos.
-Jango está vivo e localizado, você será mandado para eliminá-lo de fato.
Figueira dizia "eliminá-lo de fato", porque João Goulart, ou Jango, morrera 15 dias atrás, seu corpo foi trazido do exílio na Argentina depois de muita perturbação dos seus familiares até o Rio Grande do Sul, para o enterro. Ao menos, era o que todos acreditávamos a até certo tempo atrás. Parece que Jango é mais sacana do que se pensava.
-Explicarei, disse o velho general, um dos nossos agentes esteve em Búzios, agora no feriado e por acaso, fez o contato visual de João Goulart na maior mordomia em um hotel, ao seu estilo, acompanhado de mulatas e whisky à caubói. O agente está certo de que era Jango, pois fizera sua guarda pessoal antes do Glorioso Golpe Militar, quando Jango era o presidente; um sinal no braço esquerdo confirmou tudo, temos uma foto, tirada pelo mesmo agente. Ao que tudo indica, na Argentina, Goulart se uniu à alguma meia dúzia de trambiqueiros e conseguiu capital e recursos para forjar sua morte, assim tornando fácil seu retorno ao Brasil. Não deve ter ido logo para o sul pra evitar suspeitas, mas logo irá. Entretanto, mandaremos você lá agente Marques, para executá-lo. Aqui estão suas informações, você irá pra a Região dos Lagos imediatamente.
Que tremendo filho da puta era esse João Goulart, de covarde bonachão à um tremendo espertalhão. Pois bem, isso não irá durar, irei para Búzios matar esse farrapo de homem.
-Entendido, general. - Disse eu.
-Boa sorte! Ordem e Progresso. - respondeu-me Figueira.
Repliquei-lhe o comprimento, prestei a continência e rumei para minha missão.
Chegando no fim de tarde à Búzios, instalei-me no hotel e preparei-me para o jantar oferecido em um dos luxuosos espaços de lazer daquele lugar. Durante a viagem até a região dos lagos, li os passos do plano que traçaram para mim, e dei uma boa memorizada nas feições e traços do agora barbudo e um tanto careca Jango.
Ao sentar à mesa, fiquei observando João Goulart posando de grande empresário na mesa rodeado por belas mulheres, reconheci seus trejeitos. Por pura sorte dele, o governo brasileiro havia censurado a cobertura da imprensa sobre detalhes da morte do ex-presidente, apenas uma breve nota sobre seu falecimento fora divulgada. Assim pouquíssima gente vira seu corpo, somente seus parentes que provavelmente nem sabem que esse calhorda está bem vivo e aproveitando seu “exílio”. Ele deve ter arranjado um defunto com o rosto deformado, aquela típica cara torta característica de quem tem um derrame. Bem, era hora de seguir o plano, a noite seguia e Jango estava sóbrio e pronto para se encaminhar para sua suíte, no caminho, as doses de whisky que ele consumiu pediam para sair, foi ao mictório. Lá, o interpelei. Apontei minha pistola com silenciador para ele, enquanto ainda balançava o pinto. O cara ficou completamente assustado. Eu disse:
-Ex-presidente João Goulart, é uma honra ter com o senhor no Brasil em pleno exílio.
-Mas o quê está dizendo, homem? Meu nome é Antônio Rogério! Em que país você vive? Não sabe que João Goulart morreu e foi enterrado no sul, ainda esse mês? - O sujeito blefava, agia por instinto, como todo político brasileiro.
-Pode ter mudado sua cara, mas a voz continua a mesma, essa marca no seu braço esquerdo lhe denunciou, Jango. Acabou, venha comigo, por favor. Você é sozinho contra o governo de um país inteiro.
O cara não teve mais como resistir. Ensaiou um choro, mas se segurou, se o tivesse feito, o mataria afogado numa daqueles privadas. Fiz com que me acompanhasse até um barco que me fora preparado, e saímos mar à dentro no meio da noite. Longe da costa, parei o barco e comecei meu rito. Sim, eu não era um fanático religioso, mas seguia uns protocolo próprio antes de matar alguém. Vendo a situação na qual se achava, João Goulart agora chorava:
-Pra que me matar? Eu volto para Argentina! Não há razão para isso! Eu consegui levantar uma grana em Buenos Aires, diga-me seu preço, assim que chegar lá te mando tudo.
-Você lê a Bíblia, João? Seu nome é de apóstolo.
-S-sim, claro. Leio sim, bom homem! Diga seu nome para mim.
-Essa informação é confidencial, se eu te disser terei que matá-lo. HAHAHA! – Meu show sádico começava.
Liguei o rádio de pilha que estava jogado na embarcação e tocava “Cálice” do Chico Buarque. Não poderia ser mais conveniente.
-Sabe cantar essa música, Jango? Canta aí para eu ouvir.
E o ex-presidente João Goulart, cantava e chorava.
-Afasta de mim esse cálice Pai, de vinho tinto de sangue... – eu era só gargalhadas.
Então, para a nossa surpresa, a tola guarda costeira veio dar ordem para que nos identificassemos, qual o problema de navegar de madrugada em Búzios? Acenderam os holofotes na minha cara, Jango, veio pra cima de mim, me deu um soco e começou a pedir ajuda. Dei-lhe uma coronhada, e seu corpo caiu no mar, os guardas viram apenas o corpo cair no mar. Não souberam o que estava acontecendo, como a música estava alta e o barulho do motor deles atrapalhava, não puderam ouvir o grito de socorro de Jango. Disse que meu amigo Antônio havia caído no mar. Mostrei minha identificação militar e meu distintivo do DOI, os jovens guardas quase viraram pedra.
Na dia seguinte voltei ao Rio só à tarde, durante a manhã ouvi rumores das pessoas que procuravam por Antônio Rogério. Já no Rio, ouvi a notícia de que um homem chamado Antônio Rogério sumira em Búzios, nenhum detalhe sobre o desaparecimento. Fui até a base e declarei missão cumprida. Nunca pensei que eu receberia a ordem de matar um homem já declarado morto. Alguns anos depois do lamentável fim do Regime Militar, em meados dos anos 90, estava eu em um bar no Centro do Rio, olhei de súbito para a TV, passava o horário eleitoral gratuito. Um candidato me chamou a atenção, Antônio Rogério Pinto, do Partido Socialista, candidato a deputado estadual, quando o sujeito levantou as mãos num gesto de positivo, vi em seu braço esquerdo uma conhecida marca. João Goulart não era um sujeito tão fraco quanto todos pensavam.
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