Olhos de
Yin e Yang
Era manhã
de segunda, Antônio levantou-se apressado e fez o Sinal da Cruz como de
costume. Percebeu que havia ainda uma prostituta em sua cama, jogou uma nota de
cem reais, banhou-se, arrumou-se, abriu com um gesto meticuloso de ritual a sua
gaveta, apanhando uma sacolinha cheia de cocaína, cheirou; estava pronto pra ir
trabalhar.
Fez sinal
para o elevador que descia, sua linda vizinha o recebeu com um "bom
dia" que o fez ficar meio acabrunhado, era um homem de 45 anos recebendo
uma mera saudação de uma jovem; de olhos arregalados e já sentindo o efeito do
pó, ele retribuiu a saudação. Na portaria perguntou o placar do jogo do Vasco
para o zelador, seu Zé: Dois a zero, disse ele.
A rotina no
templo era sempre igual: oração, desjejum, artes marciais, estudo, oração,
trabalho, meditação e oração. O Lama Nundra, era bem velho e sábio, sempre
orientou particularmente seu melhor aluno, o também aspirante a lama e quem
sabe yogi, Ricardo. Ricardo convertera-se ao budismo aos 35 anos, após a morte
da mãe, não tinha filhos, fez seus votos e tornou-se monge, agora aos 65 anos,
20 a menos que seu guia o Lama Nundra, ele anda pelo fio da lâmina que separa o
vício da virtude, e se corta bastante. Nas horas de meditação, gosta de ir até
um rio que corre pelo jardim do templo, observa um pouco a neblima que baila em
cima das águas e depois baila também ele por dentro de si.
Isadora
despertou e percebeu que ainda estava na cama do cliente, havia uma nota de cem
sobre ela, aquele homem era seu freguês antigo e existia uma relação de “confiança”
entre eles. Percebeu que estava sozinha em casa e que a confiança do homem era
maior do que pensava, ou ele simplesmente não estava se importando com muitas
coisas, era um homem rico e bem sucedido, entediado e viciado.
Resolveu
andar pelo apartamento, pensou que poderia haver uma câmera a observando, não
ligou e continuou sua ronda. Logo de cara abriu a gaveta do móvel em sua frente,
era com se estivesse diante de El Dorado, na gaveta encontrou cocaína em
quantidade suficiente para 20 anos de cadeia, junto da droga, tinha também um
papel com algumas coisas escritas a mão, decidiu ler: “Me mostre sua história e eu te conto
uma estória. Divida-se comigo e te deixo roubar um pouco do que restou da minha
alma...”
Imaginou
que homem deveria estar muito chapado quando escreveu aquilo, ela nada
entendera, isso a deixou inspirada para cheirar também.
Antônio era
vice presidente de uma empresa de refrigeradores, seu irmão mais velho era o
presidente, herdaram o império do pai, ambos eram acostumados ao trabalho
administrativo, só que Antônio era inquieto, sempre foi, talvez porque queria
ser jogador de futebol ao invés de empresário. Burocrata durante toda a semana mantinha
uma outra atividade durante as madrugadas de sexta, sábado e domingo. Na
segunda seus funcionários já sabiam que ele chegaria atrasado e sua secretária
trazia prontamente seu café meio amargo com pão na chapa, ele comia e depois
dormia sem ser perturbado até o meio dia quando ia almoçar. Seu expediente era
de 8h às 17h, porém na sexta, ele ocupava o restante das horas após o trabalho
até a manhã do dia seguinte e assim era durante todo o fim de semana.
Ricardo
colhia arroz na horta que ficava no jardim do pátio quando recebeu uma ligação
da sua ex-mulher: Isadora. Ricardo era casado e vivia uma relação conturbada
com ela antes de se converter; eles nunca se amaram. Ricardo entendeu isso
melhor depois da conversão, o mestre sempre falava de amor e de karma, ações e
suas consequências, o mestre falava também das sensações do físico e do astral,
agora, Ricardo era capaz de entender que fora acometido por uma paixão enorme
na meia idade, e movido por forte paixão se casou, talvez solidão, entretanto, a
paixão e o amor são diferentes, ele dizia; o amor é passivo, não é de
devaneios, é seguro, é confiante, forte e duradouro. A paixão é intensa, é enlouquecedora,
te faz perder toda a harmonia, isso é agradável ao físico e ao astral, porém a
paixão é como pólvora que queima muito rápido e dependendo das circunstâncias
pode explodir. Não dura como o amor sincero, e ainda pode ferir muitas pessoas.
Isadora não lidou bem com a separação, mesmo não amando Ricardo, apenas
gostando, mas algumas mulheres gostam de estabilidade, até por isso insistem em
relações que têm tudo pra dar errado, assim pensava Ricardo. Ela era usuária de
drogas, e definhou de vez após o término do relacionamento, isso foi ainda
antes da conversão de seu esposo, foram casados 3 anos, se casaram com um ano
de namoro, “estamos apaixonados”, diziam para os amigos, Ricardo hoje não tem
dúvida disso, “estavam”; o término da relação se deu em um dia em que Ricardo
não pôde mais suportar as crises de abstinência de cocaína da mulher. Sempre
cuidou dela, só que ela havia ficado agressiva demais. Ricardo avisou à família
dela para que a ajudassem, ouve descaso da parte deles, com dor no coração ele
pediu divórcio, seus advogados convenceram Isadora, ela assinou todos os papéis
sóbria. Depois vieram as trevas, ela abandonou o emprego, foi demitida sem
nenhum benefício. Mais pelo efeito desregrado das drogas do que pela separação,
ela agora percebia que não amava seu esposo, ele era um porto seguro e só. A
perturbada Isadora agora se prostituia para consumir mais e mais drogas, já
vivia assim por anos, e volta e meia procurava Ricardo.
O
telefone de Antônio começou a tocar por volta de 15h, ele sabia quem era, não
quis atender, relutou, e então atendeu. “Você me deve cinco mil reais”, disse a
voz do outro lado da linha, “Eu vou te pagar hoje, às 20h, só preciso ir em
casa quando sair do trabalho e pegar a grana, tenho ela separada pra você”,
respondeu Antônio. Acumular dívidas por causa do ritmo de sua vida era já uma
constante para ele.
Saiu
meia hora mais cedo do trabalho e foi pra casa. Foi direto para a gaveta onde
guardava cocaína, viu que alguém havia cheirado quase tudo, foi olhar o
dinheiro em baixo da cama, não estava lá. Praguejou metade dos santos que
conhecia o nome, não eram muitos, tentou lembrar-se e lhe veio à memória: a
puta! Ele tinha deixado a puta dormindo ali, ela devia ter cheirado e levado o
dinheiro dele, imediatamente ele exclamou: “Puta!” Pegou o telefone do cafetão
para tentar localiz-la, lembrou-se novamente que ele possuia o telefone pessoal
dela, ela costumava ser de confiança, mesmo sendo uma puta, Antônio percebia
que sua memória estava afetada pelo uso das drogas, já não lembrava se
realmente guradara o dinheiro em baixo da cama, não quis pensar, achou mais
fácil culpar a prostituta.
Isadora
caminhou até o templo, depois de findado o efeito da cocaína. Ricardo terminava
a oração quando um jovem monge o chamou e disse que a moça loira o aguardava no
jardim. Ela fumava quando ele chegou saudando-a. “Oi” ela disse, “Como está?”
ele preocupado, “Bem. Não usei nada hoje”, mentia ela. “-O que te traz aqui?”
“-Não sei. Não sei mais nada, tô sem vontade de viver...” “- Ora, por que?” “-Não
tenho mais fé na humanidade” “-Se quem ou que nos criou tem fé, por que acha
que você tem o direito de não crer em nós?” “-Não sei, deve ser porque não
tenho toda a consciência do universo latente dentro de mim.” “-Tem sim, você
tem tudo e muito mais na sua alma, só não consegue enxergar e acho que talvez
em outra vida você enxergue, na próxima quem sabe ou daqui umas três
reercarnações, não tenha pressa, não adie seus dias, do contrário, caminhe
dentro do seu dharma é o que se pode fazer em cada vida, você não regridirá.”
“-Qual é o meu dharma?” “-Descubra” “-Me beija, Ricardo?” “-Não, Isa.” O
telefone dela tocou, era Antônio, ele só perguntou onde ela estava, ela lhe deu
o endereço do templo. “-Você deve estar feliz por eu não vir aqui te pedindo
mais uma chance, né?” retomou ela.
“-Não, tô feliz porque você veio aqui com um questionamento, a insatisfação
leva à pergunta, ter uma pergunta leva a ter uma resposta, assim Siddharta
começou seu caminho de iluminação.” “-Você não transa faz quanto tempo?” “-Quer
tomar um chá?” ele perguntou, “-Claro!”
Depois
de rodar por quarenta minutos e cheirar duas carreiras de pó, Antônio chega ao
templo. Ele carrega sua pistola 9mm em baixo da blusa. “A puta, seus budistas
punheiteiros! Onde está a puta?” Um jovem correu até Ricardo e disse que um
homem nervoso procurava a sua amiga. “-Acalme-se, senhor. Podemos te ajudar?”
veio Ricardo, com Isadora segurando a sua mão assustada. “-Essa puta, consumiu
minhas coisas e roubou meu dinheiro, eu quero meus cinco mil!” “-Não sei do que
ele está falando, estive com ele ontem, dormi na casa dele, e sim, usei o que
era dele hoje, mas não peguei dinheiro nenhum.” “-Você me disse que não tinha
usado nada hoje.” Retorquiu Ricardo. “-Tá vendo, seu monge? Não se confia em
putas. Me dá logo o meu dinheiro, não me deixe irritado.” O homem estava
completamente alterado pelo efeito da droga, Ricardo tentou o acalmar, mas ele
sacou sua arma e disse que queria o dinheiro de uma vez, Isadora chorou e jurou
que não havia pego nada. Num lance, Antônio destravou a arma e apontou para
Isadora, Ricardo de súbito, saltou contra ele e foi acertado por um tiro na
barriga, Isadora começou a chorar com o dobro da vontade de antes. Antônio
largou a arma, e ajoelhou-se, Isadora o insultava,chamava-o de assassino,
diante disso, os monges já haviam chamado a polícia que soavam as sirenes
dobrando a esquina. Antônio recolheu sua arma e correu para seu carro. Dentro
dele, abriu o porta luvas para guardar a arma, cinco mil reais contados e
amarrados por um elástico de borracha estavam ali.
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