sábado, 7 de dezembro de 2013

Olhos de Yin e Yang

Olhos de Yin e Yang


Era manhã de segunda, Antônio levantou-se apressado e fez o Sinal da Cruz como de costume. Percebeu que havia ainda uma prostituta em sua cama, jogou uma nota de cem reais, banhou-se, arrumou-se, abriu com um gesto meticuloso de ritual a sua gaveta, apanhando uma sacolinha cheia de cocaína, cheirou; estava pronto pra ir trabalhar. 
Fez sinal para o elevador que descia, sua linda vizinha o recebeu com um "bom dia" que o fez ficar meio acabrunhado, era um homem de 45 anos recebendo uma mera saudação de uma jovem; de olhos arregalados e já sentindo o efeito do pó, ele retribuiu a saudação. Na portaria perguntou o placar do jogo do Vasco para o zelador, seu Zé: Dois a zero, disse ele.

A rotina no templo era sempre igual: oração, desjejum, artes marciais, estudo, oração, trabalho, meditação e oração. O Lama Nundra, era bem velho e sábio, sempre orientou particularmente seu melhor aluno, o também aspirante a lama e quem sabe yogi, Ricardo. Ricardo convertera-se ao budismo aos 35 anos, após a morte da mãe, não tinha filhos, fez seus votos e tornou-se monge, agora aos 65 anos, 20 a menos que seu guia o Lama Nundra, ele anda pelo fio da lâmina que separa o vício da virtude, e se corta bastante. Nas horas de meditação, gosta de ir até um rio que corre pelo jardim do templo, observa um pouco a neblima que baila em cima das águas e depois baila também ele por dentro de si.

Isadora despertou e percebeu que ainda estava na cama do cliente, havia uma nota de cem sobre ela, aquele homem era seu freguês antigo e existia uma relação de “confiança” entre eles. Percebeu que estava sozinha em casa e que a confiança do homem era maior do que pensava, ou ele simplesmente não estava se importando com muitas coisas, era um homem rico e bem sucedido, entediado e viciado.
Resolveu andar pelo apartamento, pensou que poderia haver uma câmera a observando, não ligou e continuou sua ronda. Logo de cara abriu a gaveta do móvel em sua frente, era com se estivesse diante de El Dorado, na gaveta encontrou cocaína em quantidade suficiente para 20 anos de cadeia, junto da droga, tinha também um papel com algumas coisas escritas a mão, decidiu ler: “Me mostre sua história e eu te conto uma estória. Divida-se comigo e te deixo roubar um pouco do que restou da minha alma...”
Imaginou que homem deveria estar muito chapado quando escreveu aquilo, ela nada entendera, isso a deixou inspirada para cheirar também.

Antônio era vice presidente de uma empresa de refrigeradores, seu irmão mais velho era o presidente, herdaram o império do pai, ambos eram acostumados ao trabalho administrativo, só que Antônio era inquieto, sempre foi, talvez porque queria ser jogador de futebol ao invés de empresário. Burocrata durante toda a semana mantinha uma outra atividade durante as madrugadas de sexta, sábado e domingo. Na segunda seus funcionários já sabiam que ele chegaria atrasado e sua secretária trazia prontamente seu café meio amargo com pão na chapa, ele comia e depois dormia sem ser perturbado até o meio dia quando ia almoçar. Seu expediente era de 8h às 17h, porém na sexta, ele ocupava o restante das horas após o trabalho até a manhã do dia seguinte e assim era durante todo o fim de semana.

Ricardo colhia arroz na horta que ficava no jardim do pátio quando recebeu uma ligação da sua ex-mulher: Isadora. Ricardo era casado e vivia uma relação conturbada com ela antes de se converter; eles nunca se amaram. Ricardo entendeu isso melhor depois da conversão, o mestre sempre falava de amor e de karma, ações e suas consequências, o mestre falava também das sensações do físico e do astral, agora, Ricardo era capaz de entender que fora acometido por uma paixão enorme na meia idade, e movido por forte paixão se casou, talvez solidão, entretanto, a paixão e o amor são diferentes, ele dizia; o amor é passivo, não é de devaneios, é seguro, é confiante, forte e duradouro. A paixão é intensa, é enlouquecedora, te faz perder toda a harmonia, isso é agradável ao físico e ao astral, porém a paixão é como pólvora que queima muito rápido e dependendo das circunstâncias pode explodir. Não dura como o amor sincero, e ainda pode ferir muitas pessoas. Isadora não lidou bem com a separação, mesmo não amando Ricardo, apenas gostando, mas algumas mulheres gostam de estabilidade, até por isso insistem em relações que têm tudo pra dar errado, assim pensava Ricardo. Ela era usuária de drogas, e definhou de vez após o término do relacionamento, isso foi ainda antes da conversão de seu esposo, foram casados 3 anos, se casaram com um ano de namoro, “estamos apaixonados”, diziam para os amigos, Ricardo hoje não tem dúvida disso, “estavam”; o término da relação se deu em um dia em que Ricardo não pôde mais suportar as crises de abstinência de cocaína da mulher. Sempre cuidou dela, só que ela havia ficado agressiva demais. Ricardo avisou à família dela para que a ajudassem, ouve descaso da parte deles, com dor no coração ele pediu divórcio, seus advogados convenceram Isadora, ela assinou todos os papéis sóbria. Depois vieram as trevas, ela abandonou o emprego, foi demitida sem nenhum benefício. Mais pelo efeito desregrado das drogas do que pela separação, ela agora percebia que não amava seu esposo, ele era um porto seguro e só. A perturbada Isadora agora se prostituia para consumir mais e mais drogas, já vivia assim por anos, e volta e meia procurava Ricardo.

O telefone de Antônio começou a tocar por volta de 15h, ele sabia quem era, não quis atender, relutou, e então atendeu. “Você me deve cinco mil reais”, disse a voz do outro lado da linha, “Eu vou te pagar hoje, às 20h, só preciso ir em casa quando sair do trabalho e pegar a grana, tenho ela separada pra você”, respondeu Antônio. Acumular dívidas por causa do ritmo de sua vida era já uma constante para ele.
Saiu meia hora mais cedo do trabalho e foi pra casa. Foi direto para a gaveta onde guardava cocaína, viu que alguém havia cheirado quase tudo, foi olhar o dinheiro em baixo da cama, não estava lá. Praguejou metade dos santos que conhecia o nome, não eram muitos, tentou lembrar-se e lhe veio à memória: a puta! Ele tinha deixado a puta dormindo ali, ela devia ter cheirado e levado o dinheiro dele, imediatamente ele exclamou: “Puta!” Pegou o telefone do cafetão para tentar localiz-la, lembrou-se novamente que ele possuia o telefone pessoal dela, ela costumava ser de confiança, mesmo sendo uma puta, Antônio percebia que sua memória estava afetada pelo uso das drogas, já não lembrava se realmente guradara o dinheiro em baixo da cama, não quis pensar, achou mais fácil culpar a prostituta.

Isadora caminhou até o templo, depois de findado o efeito da cocaína. Ricardo terminava a oração quando um jovem monge o chamou e disse que a moça loira o aguardava no jardim. Ela fumava quando ele chegou saudando-a. “Oi” ela disse, “Como está?” ele preocupado, “Bem. Não usei nada hoje”, mentia ela. “-O que te traz aqui?” “-Não sei. Não sei mais nada, tô sem vontade de viver...” “- Ora, por que?” “-Não tenho mais fé na humanidade” “-Se quem ou que nos criou tem fé, por que acha que você tem o direito de não crer em nós?” “-Não sei, deve ser porque não tenho toda a consciência do universo latente dentro de mim.” “-Tem sim, você tem tudo e muito mais na sua alma, só não consegue enxergar e acho que talvez em outra vida você enxergue, na próxima quem sabe ou daqui umas três reercarnações, não tenha pressa, não adie seus dias, do contrário, caminhe dentro do seu dharma é o que se pode fazer em cada vida, você não regridirá.” “-Qual é o meu dharma?” “-Descubra” “-Me beija, Ricardo?” “-Não, Isa.” O telefone dela tocou, era Antônio, ele só perguntou onde ela estava, ela lhe deu o endereço do templo. “-Você deve estar feliz por eu não vir aqui te pedindo mais uma chance, né?”  retomou ela. “-Não, tô feliz porque você veio aqui com um questionamento, a insatisfação leva à pergunta, ter uma pergunta leva a ter uma resposta, assim Siddharta começou seu caminho de iluminação.” “-Você não transa faz quanto tempo?” “-Quer tomar um chá?” ele perguntou, “-Claro!”

Depois de rodar por quarenta minutos e cheirar duas carreiras de pó, Antônio chega ao templo. Ele carrega sua pistola 9mm em baixo da blusa. “A puta, seus budistas punheiteiros! Onde está a puta?” Um jovem correu até Ricardo e disse que um homem nervoso procurava a sua amiga. “-Acalme-se, senhor. Podemos te ajudar?” veio Ricardo, com Isadora segurando a sua mão assustada. “-Essa puta, consumiu minhas coisas e roubou meu dinheiro, eu quero meus cinco mil!” “-Não sei do que ele está falando, estive com ele ontem, dormi na casa dele, e sim, usei o que era dele hoje, mas não peguei dinheiro nenhum.” “-Você me disse que não tinha usado nada hoje.” Retorquiu Ricardo. “-Tá vendo, seu monge? Não se confia em putas. Me dá logo o meu dinheiro, não me deixe irritado.” O homem estava completamente alterado pelo efeito da droga, Ricardo tentou o acalmar, mas ele sacou sua arma e disse que queria o dinheiro de uma vez, Isadora chorou e jurou que não havia pego nada. Num lance, Antônio destravou a arma e apontou para Isadora, Ricardo de súbito, saltou contra ele e foi acertado por um tiro na barriga, Isadora começou a chorar com o dobro da vontade de antes. Antônio largou a arma, e ajoelhou-se, Isadora o insultava,chamava-o de assassino, diante disso, os monges já haviam chamado a polícia que soavam as sirenes dobrando a esquina. Antônio recolheu sua arma e correu para seu carro. Dentro dele, abriu o porta luvas para guardar a arma, cinco mil reais contados e amarrados por um elástico de borracha estavam ali.



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